sábado, 15 de fevereiro de 2014

TEMPERANÇA

A cena não parecia nada coerente. A mesa entulhada de pratos sujos, talheres arremessados em copos tombados e três garrafas de vinho quase vazias. No meio da grande entropia, algumas cartas de tarô espalhadas. 
Laura, por puro instinto, catou os arcanos já um pouco maculados por uma substância semelhante a sangue, mas que provavelmente era o famoso molho de tomate de Tia Cotinha. 
Logo percebeu que ali não estavam todas as figuras já tão conhecidas e gastas pelo descortinar de mistérios. Quantos namoros haviam sido revelados e até mesmo descartados através daquele velho oráculo?
Agora, com os pequenos retângulos nas mãos, Laura imaginava o destino reservado às cartas ausentes. Fogueira? Lixo? Esquecimento? 
Lembrou-se então da estranha figura do enforcado. Pendurado pelo pé e não pelo pescoço, simbolizava o sacrifício de algo em quase harmônica passividade. Ele faltava ali. Naquela mesa não havia oferenda ou renúncia alguma. 
Laura pensou em tudo o que deixara de vivenciar. Os dias de que abrira mão por simples descaso. A vida esfregada nas palmas das mãos, na tentativa de apagar um destino mal traçado. 
Desde de menina, soube sempre se controlar. Lidava bem com os seus conflitos, quase os calando. Era sempre assim, mesmo quando em plena ebulição dos instintos. Temperança de sentimentos trocados, em jarros dourados, como água cristalina. O constante fluxo, em mudança de continentes revelando a temperatura alterada. 
Sorriu para si mesma com quase indiferença. Seus lábios simulavam tentativas de uma conciliação com o tempo. De longe se via o encantar com a promessa de harmonia. 
De novo, Laura vestia-se em fantasias. Feminina, flor amarela no alto da cabeça, com as costas revelando asas azuladas, quase perenes.
Suas mãos pálidas brincavam com as linhas onduladas dos vasos cheios de água e esperança. Havia ali a aceitação muda da passagem de um estado a outro. De um desejo a um sonho. 
Na mesa esquecida, o vinho transbordava lento, em poças de alquimia. Metamorfose da vida que Laura somente contemplava.