terça-feira, 30 de julho de 2013

O ESTRANHO


Ela encostou a cabeça no travesseiro e começou a recordar. Sem sentido essa viagem de volta a lugar algum. Pura distração na hora prevista para descanso e paz. Na tela poluída com imagens do dia, um ponto vazio, ali no canto, chamou sua atenção. Nele havia aquele silêncio do caos, abrigo do esquecimento, o palpitar solitário de uma tempestade a se aproximar. 
Entre todas as cores que ali ela pusera com capricho e, talvez mesmo por um capricho qualquer, lá estava o centro de tudo. Discreto, camuflado por camadas de poesia e fantasia. Improvável suspeito de crime algum. Nada falava. Na verdade, era mudo companheiro. 
Assim, quase insone, ela se deu conta da distração cometida. Tanto movimento e encanto provocaram a perda do foco. As informações eram quase inexistentes. Sabia sobre o filme preferido, o carro roubado, o braço machucado. Os elementos surgindo como peças imprecisas de um quebra cabeça de mil desejos. Difícil era formar o cenário. Mais complicado ainda era conhecer os personagens. Não tinham sido sequer apresentados. Como continuar com aquele teatro sem cenário e sem personagens? 
Não havia menção alguma do estranho naquele script. Família, amigos, amores. Nem uma linha sequer. Enredo de fato só de suspense e mistério.  Os diálogos eram extensos, fluíam sem a menor tensão. Não revelavam requintes de espião, nem artimanhas de inimigo.Quem era ele, afinal?
O narrador com sua fala arrastada aproveitava os elementos que por ali encontrava. E só ela, no vazio, fitava presente e futuro. Seus sentimentos ainda velava um tanto receosa, mas de tudo um pouco já havia revelado. Por que não? Por que teria de ocultar se nela só havia verdades? 
Na sua mente, ele realmente reinava. Quase pleno, mas absoluto. Calmo, paciente, com olhos de quem vê o mais dormente. Apontava o caminho, a direção como quem nada decide e só finge acompanhar o fluxo. Lento, absorvente movimento. Mergulho sem chance de resgate.  
Contaminada como estava, era só alegria e encontro. Não conhecia senão ou oposição. Só queria estar ali, ir com ele aonde fosse, em transe febril ou em lúcidos passos. Ah, que desconhecido fosse, porque dele partilharia um mundo. Se o objetivo era a ausência de expectativas, então que lavassem as almas de preconceitos e temores. Seguiriam assim, juntos, mãos dadas, até que uma encruzilhada surgisse. Ou não. Afinal, era só estranho encanto!  













domingo, 28 de julho de 2013

SEM ESPERA


O tempo, generoso, passou com velocidade sem se importar com prováveis obstáculos. Ela agradeceu a quase falta de expectativas. Na pressa, tudo o que lhe restava era viver o momento , depois o seguinte, e assim por diante, pulando as pausas para reflexões. Sem oportunidade para avaliar joelhos ralados, hematomas ou cortes, continuava em frente. 
Em alguns momentos, as mãos geladas. Os pensamentos entorpecidos por um querer satisfeito aos goles. Então, sem filas de espera, sem bancos de aguardo e descanso, a vida se fez veloz e intensa. 
Se houve atropelo, não pôde perceber. Talvez, quando o caminho fosse refeito, encontrasse marcas e respingos de sangue. De onde estava, nem poeira avistava. Não havia possibilidade de olhar duas vezes. Visão turva. Orientação perdida. 
Sem quedas, prosseguia. Em passos desiguais, em dança aleatória. Sentia-se segura, amparada pela própria força. Para onde iria, não tinha ideia. Só seguia o fluxo como um rio em oceano derramado. 
Inundada, ultrajada, em farrapos de sensatez. Nua, sem pudores, de tudo quis um mundo. E o teve. Aceita, liberta de qualquer amarra, enfim abrigada, emergiu plena. 
O mais difícil seria se acostumar agora à falta de movimento, ao cair vazio. Deixou-se ficar, admirada com tudo o que lhe acontecera. Sem fôlego, era hora de repousar. Aceitar-se serena e muda, nos braços envolvida. 
Precisava ali ficar, quase imóvel. Sem pensar no que viria, posto que era só chama de um novo dia. Em belas fantasias, sua mente já se desembrulhava oferecida. Mas ela só fez piscar e deixar o amanhã para outro compasso. Estava tudo tão bem desenhado. Em perfeita conjunção com o que se expandia: corpo, mente, enfim.





quinta-feira, 25 de julho de 2013

ACONCHEGO


Ruas alagadas de pessoas com as mãos nos bolsos. Casacos fazendo as vezes de outras acolhidas. Rostos cruzando-se sem reconhecimento. O frio empurrando todos para casa, para o aconchego de um suposto lar. 
Há os que realmente possuem um porto, um ninho, um lugar de chegada aguardada. Há outros que desfilam impacientes para destino ignorado. Braços cruzados que deveriam não mais guardar segredos e sim paz compartilhada.
O frio pressiona de dentro pra fora, provocando abraços já há muito tempo esquecidos no fundo de um armário. Espantados bolor e timidez, entrelaçados sentimentos reproduzem calor imediato.  Em vão, ainda há resguardo de sentidos e aptidões. Depois de cruzadas as barreiras, nada se faz tão urgente quanto a proximidade. 
Mãos demoram mais para se largar. Beijos se repetem sem argumentos de despedida. Hora de hibernar individualidades. Vento soprando para longe solidão e egoísmo. Há mais para se compartilhar, multiplicar em doses suficientes para se embriagar de amor. Procura-se par, ímpar, o que puder completar o jogo, o tabuleiro das intenções e emoções. 
Animais buscam instintivamente por abrigo. Procuram amparo, alívio para fome, sede e frio. Há em toda a natureza, redenção ao fogo, ao calor que se espalha sem explicação. Normal, natural, esperado encontro.
Noites frias pedem sopa e afinidade. Vontade de superar obstáculos e aceitar o outro. Querer a companhia do amigo e o ficar do hóspede. Acreditar nas histórias contadas em volta da fogueira. Afogar frio e vazio em vinho. Correr, rir, juntar mãos e canções. Adormecer aquecidos corpo e coração. 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

UM DIA


Vinte e quatro horas. Um pouco mais, talvez. Um intervalo gigante entre o querer e o poder. A areia da ampulheta caindo lentamente, grão em chão derramado. Vidro lascado, calendário riscado. 
Um dia inteiro para se viver antes de acordar novamente e sorrir. É hoje. Mas ainda não é. Há duas noites para atravessar, louça para lavar, o resto do dia para varrer. Marcar as iniciais na porta do amanhã. Ter como meu o que ainda não desabrochou. Ainda não. 
Preciso piscar os olhos uma, duas, muitas vezes, para ver se o tempo passa mais depressa. Dançar pulando compassos, ignorar as pausas, seguir adiante no ritmo do pulsar de pensamentos. 
Um dia, uma terça. Nem rezo o terço. Dia de Marte, Senhor da guerra. Deixe-me ficar na impaciência, reinar no desassossego da entrega. Permita-me despejar águas e formar cachoeiras. Alimentar todos os rios, extrapolar margens e arranjos. Dedicar-me ao inesperado sonho, ao projeto mais fútil. Colorir unhas como quem se pinta para a batalha. Camuflada esperança de ter mais o que fazer do que no tempo pensar. 
Ah, dia , chegue logo. Alcance meus pés ainda na cama, me assombre com seus bons presságios. Vista-me de luz. Cubra-me de flores. Traga-me folha e papel, escreverei seu nome. Levantarei de vez, cheia de sorrisos e suspiros. É dia. Ai, ainda não.
A noite abraça possibilidade e saudades. Corre depressa escondendo-se na sombra da lua. Dragão espera. São Jorge não avança. Ah, o tempo não se apressa mesmo. 
Então, prometa não se esquivar em desculpas. Só mais um dia. Não desista da festa. Acolha os convidados: abraços e beijos. Mais alguns. Todos eles. 


domingo, 21 de julho de 2013

DIREÇÃO PERIGOSA

[

Não seria agora que ela se esquivaria. Talvez fosse mais sensato desviar do trafego enlouquecido de sentimentos, estacionar no meio fio das ideias. Sem rumo, não estaria. Buscaria sinalização onde seus olhos alcançassem sentido. Nem sempre encontraria vias expressas, fluxo livre, estradas seguras. Era mais fácil atropelar os fatos, conduzir amores e intenções para o outro lado, mesmo na contramão dos acontecimentos. 
No início foi um simples girar de chave, um esquentar de motor, uma decisão tomada assim de arranque. Sem mapas ou GPS, a corrida logo se antecipou ao destino programado. 
Algumas vezes, pensou em largar o volante e optar por um passeio de bicicleta. Já muito girava em sua mente, melhor simplificar em duas rodas o que não se resolvia em quatro. Era tudo movimento, porque a vida não aceitava parada em fila dupla. Talvez em casais, talvez pais e filhos, por um momento ou outro, mas sem permissão de descanso além do estipulado limite do cartão. 
Sim, corria-se o risco de esquentar demais, de perder água e sentido, de esvaziar tanque de promessas e intenções. Havia regras,muitas delas, todas ali elencadas no livreto da auto escola. 
Ela já fora informada de quase tudo. Frequentara as aulas necessárias para aprender de uma vez que era preciso se auto conduzir, definir suas rotas, mesmo as de fuga. Aceitar que algumas estradas seriam bem ruins, que talvez o tempo mudasse de repente e embaçasse vidros e sonhos. 
Não deveria ser tão complicado assim, pensou, já desacelerando um pensamento mais veloz. Investira toda a vida em si mesma, com tantos erros e acertos quanto coubessem no bagageiro. Estepe, ocasionalmente usado, trocado por mãos amigas. Sabia que havia quem não se importasse em se sujar de graxa por ela. 
O lugar do passageiro vago. A paisagem clara em amplos para-brisas. As luzes no painel piscando na sintonia desejada. Estava tudo pronto.  Ela estava pronta. Da vida, se ocuparia. Do trajeto, aproveitaria. Sob tempestades, ou sob sol escaldando capota e desejos. Ali, dali em diante, bem ou mal, era ela quem conduzia.  

sexta-feira, 19 de julho de 2013

SENHOR DAS IMAGENS


Não o conhecia, mas também não poderia dizer que o desconhecia por completo. Era assim uma espécie de personagem a entrar e a desaparecer de sua vida. Sempre carregado de suspense e uma trilha sonora particular. Ela suspeitava que sem aquela companhia musical, o seu encanto se desintegraria por completo. O homem não teria mais a força vital que lhe movia através dos cenários cotidianos. Os passos não pareceriam assim tão decididos e firmes. Com certeza, pereceria. Encolheria. Seria mais um entre tantos que por ali passaram.
Além da música, o sujeito trazia consigo uma bagagem peculiar: malas, caixas, baús, todos repletos de imagens. Algumas tão já conhecidas, outras de inacreditável beleza, poucas de aparente raridade. Eram preciosas gravuras que mergulhavam com facilidade nas mentes que se aproximavam curiosas. Fora assim com ela. Experimentara sinestesias extravagantes ao tocar em alguns daqueles cartões, fotografias gastas pelo tempo e lágrimas.  Projeções mentais que se deitavam com ela sem permissão. Cobriam seu corpo com lençóis de sonhos, de ideias tão novas quanto a vida que lhe vinha ao ventre.
Espetacular sensação de render-se aos inacabados contornos daqueles desenhos coloridos. Eram todos uma viagem sem volta, com direito à paisagem na janela de um vagão encantado. Ele por sua companhia, seu fornecedor de magias, de ousadias em luz e sombra. Seu cavalheiro de escolhas difíceis, de maneiras estranhas, de compreensão tardia. Conhecedor das verdades expostas e das mentiras tão veladas como slides queimados pelo sol. De fato, era mestre. Das imagens, o senhor. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

MENSAGEM SEM FIM


Ela procurava pelo profundo e obscuro sentido de tudo, pelas revelações mais sutis no intervalo de uma palavra e outra.  Atravessaria o oceano da indecisão se lhe fossem revelados causa e efeito.  Ainda desconhecia andamento e custo, mas aceitava a parceria incerta.  
O mistério teimava em invadir as margens da história ainda recente e frágil. Devorando razão, camuflando dúvidas e anseios. Tudo encoberto por um misto de encantamento e ferrugem. Sentia o gosto de sal, areia e algum sonho triturado sem delicadezas.
Pedaços de ilusões foram assim atirados contra a janela das intenções. Por lá, nada parecia passar. Nem sua presença parecia pesar ali. Nada se adiantava na hora. Os minutos mesclavam-se às palavras, algumas bonitas, outras mais ousadas, as últimas de merecido esquecimento. 
Ela deitava-se sobre flores ainda por desabrochar. Um certo receio de florescer antecipado, de apressado desapontamento, de um fim prematuro. Temia desgastar aquelas preciosas pedras com os dentes da sua impaciência. Lutava contra sua própria natureza para assegurar uma chance a mais para o que lhe apresentavam como enredo de mais um romance. 
Por mais que recolhesse asas e plumagens, seu instinto era voar, permanecer em delírio valsante até que outra tempestade a trouxesse à terra.Já previa os pingos a lhe desbotar a alma alegre.  
Descascava argumentos para livrar-se das interrogações que se amontoavam pelos cantos. Cada pensamento brotava carregado de alegrias renovadas. Dessas surpresas que preenchem os espaços e limpam maus presságios. Assumiria de vez o insensato querer como mapa amassado do destino. Que fosse assim, um começo sem fim previsto. Um reinado de sensações em território desconhecido. Que seja história sem mensagens, sem segredos, sem final. Abraço e beijo. Só. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

RISCOS DE SAL


Remexidos papéis e argumentos, a casa cedeu. Sob o peso inerte de um sólido desejo. Sem nem um sopro de razão. Tudo arrasado e arrastado pelas ondas da imaginação. Ela culparia hormônios ou demônios, se não fosse tão fremente a busca por sobreviventes sentidos.
Não restaram destroços. O que fora derrubado tornara-se puro pó. Poeira dispensada, soprada pela brisa. O mar acolhera o que nem o fogo destruiria. Legado de mil condições impostas, fez-se crescente o apelo da vida por mais e mais. 
Em suas mãos, coragem e verdade. Nos seus olhos, cristais de amanhãs previstos. Os pés em elevada distância do que se consideraria provável ou sensato. Teria asas se considerasse a pureza como opção. 
Possuía ainda o gosto das pimentas mais ardentes na boca e na alma, como se mais fosse preciso provar. Experimentaria todos os sabores antes que o paladar emudecesse exausto. Acrescentaria de si mesma o ardor de condimentos mais picantes. 
Neste momento de recriação, nada era arriscado demais. O risco maior seria perder a intenção, o encontro, o revirar de toda emoção. 
Identidades reveladas somente no vão de um esbarrão do acaso. Palmas unidas, linhas entrelaçadas, tecendo seu próprio mapa. Destino estapeando descrentes alinhados em disciplina de sensações. Nada mais ali permaneceria intacto, já que o sal temperara o insosso desjejum de promessas amanhecidas.
Que a base não fosse firme, ela já pressentia. Paredes finas, tênues delicadezas em asas de borboleta, erguiam-se. Combinações diferentes de cal e algum mal sustentariam o que não encontrava descanso. 
De concreto só a certeza de se querer construir mais do que destruir. De certo, só a vontade de ficar ali, em sintonia com o desconhecido. Abrigar-se em peito oferecido quando a noite chegasse. Fitar estrelas em olhos e céus. Encontrar proteção e calor, sem questionar razão ou emoção. De resto, era só passado a ser esquecido, morto e sepultado no terreno baldio do não mais querer. 


NUVENS


Vontade de ali ficar, acomodada e aquecida. Talvez até mesmo esquecida do que a realidade lhe traz. A leveza das sensações. O doce toque de asas em sua pele como se anjos a visitassem mais de uma vez. Seria fácil se entregar de vez a essa fantasia, de se fazer completa em descoberta. 
Ela espreguiça corpo e alma. Felina coincidência de sentimentos e condimentos. Sem pressa, fareja o dia à procura de novas surpresas. Deseja permanecer enrolada em panos de amor, aconchegada nos braços imaginários, embriagada, abrigada em bem querer. 
O dia pega em suas mãos e a convida para nova dança. Há muito ainda a fazer. Embala, então, presente e futuro como se tudo dela ainda escorresse. O espelho revela olhos adocicados pelos dias corridos e tão bem vividos. Sorriso de muitos dentes, todos prontos para mastigar ilusões. Lábios rubros quase em hematomas desenhados. São beijos já tatuados, impressões aos poucos reveladas.
Abre janelas com a lentidão de quem planeja algo. Sente o vento espalhar cabelos e pensamentos. O sol tinge sua tez e desperta seus olhos para o horizonte. Ondas de lembranças sacodem seu riso, seu siso, seu liso entender. 
Lá estão elas. Imagens dispersas, que aos poucos se acumulam sobre o azul insistente do céu. Leves, sem contornos, vaporosas em algodão desenhadas. Nelas, pode-se imaginar. Plena em sua etérea passagem. Repleta de prometidas chuvas a desaguar quando assim pudessem. De lá, não queria mais partir. Suspensa em condensação acarinhada. Nuvem atravessada por raios de sol. Acumulada de vapores e amores. Se a chuva vier, que seja bem-vinda. Se feliz ainda for, que seja pela vida toda. 

domingo, 14 de julho de 2013

QUEM?


Acostumada a ser interpelada sobre seus passos, ela apenas balançou a cabeça em negativas sucessivas. Sacudiu os cabelos tentando afastar qualquer insistência. Suas ideias pairavam no ar. Não havia mais respostas. Não guardava mais lembranças. Uma nuvem de esquecimento encobrira o céu de sua memória.
Havia acontecido. De uma forma ou de outra, acontecera. Em questão de minutos, em mágica sintonia. Simples despetalar em lenta queda de sentidos. Sim, ocupara tempo e espaço sem licença. Como se já programado tudo estivesse. Estalo, faísca e labaredas. Sequência de atos determinados pelo querer genuíno. Riscos imprevistos, falhas cobertas com delicadezas sem fim. 
Ela sorria sem perceber porque ardia em crescente expectativa. Enquanto a mente lhe impingia alguma razão, metade dela já estava mergulhada no enredo apresentado. 
Impulsionada pela sede que lhe dominava, acrescentou dias ao que viria. Queria mais. Queria semanas, meses, ou talvez ainda mais. O tempo lhe devia satisfação agora. 
Embora insistissem na revelação de momentos passados, ela nada dizia. Esquecera. De tudo. De todos que antes por ali passaram. Como se a chuva aquarelasse não só suas dores, mas outros amores. Já fora ela. Agora, era outra. E essa se espalhava em desalinho, surpreendendo a si mesma pela ausência de pudores. 
Não se importava mais com nomes que antes lhe causavam arrepios ou suspiros. Não se lembrava deles. Não reconhecia mais suas iniciais. Não as possuía tatuadas na pele, nos lábios, no sorriso. 
Tudo se fora, assim, de repente. Aqueles que perderam identidade em sua alma, mais nada significavam. Lições repetidas que viraram rascunho inútil. Folhas rasgadas de um livro já esquecido. Sem nomes, Sem rostos, sem gostos. 

quinta-feira, 11 de julho de 2013

ÀS CEGAS


Desejou que a noite não chegasse tão cedo e que a tarde se estendesse generosa por mais algumas horas. O tempo suficiente de produzir luz pelo caminho restante. Não haveria lanternas à disposição. Não teria respostas a lhe guiar. Era toda dúvida e pressa. Seus pés pareciam seguir em ritmo próprio sem que sua mente pudesse acompanhá-los. 
Enfim, chegou. A lugar desconhecido, sem placas ou anúncio da sua presença. Optou pela experiência inusitada. De olhos vendados pela ignorância, adentrou o silêncio. Sem tato, sem perfumes a lhe provocar instinto de fuga, desceu degraus com receio de cair ou talvez desaparecer.
Instalou-se no caos. Parte daquilo também parecia ser sua por direito. O atraso, a fuga, a deslocada realidade, tudo a mantinha ali na expectativa do próximo minuto. Do alto, veio o aviso, um eco desencontrado de reconhecimento. Ela percebeu-se liberta de qualquer desassossego. Enfim, um pouco de luz roubada da tarde que se findara. Ela voltou os olhos para que se refletissem acolhidos. E passos seguiram-se acompanhados de cuidados velados.
Próximos o bastante para serem notados. Mãos estendidas, acolhidas, ungidas com óleos imaginários. Na impossibilidade de abraços, palmas se abrigavam, linhas se completavam. Apresentação informal, táctil e benigna. Calor trocado, delicadezas provadas em sintonia. 
Deixaram os compassos tocarem espaço e tempo, sem pausas para abstrações. Fosse quem fosse, ela ali estava. Sem domínio ou trégua. Repleta de suposições que lhe acariciavam a vaidade. Assim,  surgiu o primeiro argumento silenciado boca a boca. Paciência posta à prova, pressa retida a tempo de se deliciar com a descoberta. 
Tão acostumados à escuridão, supunham-se iluminados por algumas estrelas recém-colhidas. Quietos, embriagados com palavras não ditas e pensamentos revoltos, deixaram-se ficar na esperança de uma completude que talvez ali se anunciasse. Já não era mais dia. Havia ali o preparo do céu para a noite que caia em desmaio. Cores tingindo nuvens, sustentando uma lua envaidecida, orgulhosa de abençoar encontro e entrega . Posto assim, sem lágrimas, apenas sorrisos, o dia terminava sem direção, em cego abandono, completo por si só.  



sexta-feira, 5 de julho de 2013

LUZ E SOMBRA

Aconchegada na própria sombra, esperava por alguém. Assim, agasalhada e sem pressa, aninhada na observância do momento. Olhava os passos que outros davam, contando suas pegadas em desalinho e esquecimento. Um, dois, três, os muitos se multiplicavam em cascata e graça. 
Terminava por se distrair com tanta diversidade humana. Os traços sempre em desenho interminável, cabelos em redemoinhos e olhos de todas as cores possíveis. 
Todos ali passavam, uns com urgência, outros com apenas impaciência. Dali, ela os percorria com os olhos atentos de quem já sabe esperar por mais. Não desejaria outra paisagem, nem procuraria outros personagens. Satisfeita por estar ali, clandestina e quase esquecida.
Esticou-se para não perder a elástica realidade que ali se apresentava. Nem todos pisavam no mesmo caminho, alguns até lhe piscavam. Insones transeuntes que lhe abriam espaço entre corpos para a luz entrar. Descobertos sentidos buscando assento no corredor do dia. Mãos que se davam e colhiam de tudo o mais precioso segredo. 
Quase adormecida no seu perambular em sonhos alheios, ela se deixou levar pelas horas que molhavam sua espera. Alguém já estava ali. Há muito estancara em admirada contemplação. Como guardião dos delírios daquela que se encolhia entre trovões e estrelas. Do alto, a contemplava, embriagado com sua inocência. De onde viera aquela mulher? Ou seria apenas uma aparição sem explicação?
Ela abriu os olhos para melhor enxergar o seu chegar. O sorriso iluminou o que parecia coberto pelo invisível. Aceitou a mão estendida, o abraço, o abrigo em braços que se completavam em beijos. E assim foi. Foi ser feliz. 

MIRAGEM

Ela cruzou e descruzou olhares em questão de segundos. Não era mais impaciência. Era pura exaustão. Cansada de tantos desfiles de palavras e flores estendidas. O desejo instalara-se nos olhos daqueles que ali estavam. Alguns doces, outros traiçoeiros. Os próximos, decerto, servis e pouco atentos. 
Ela recusava pedidos com nãos inaudíveis, balançar de cabeça, silêncios embaraçosos. Perdera a compaixão no terceiro olhar que lhe convidara para descobrir mais de si mesma. Seus pensamentos sombrearam-se com o peso daquelas ameaças gentis. 
A chuva batendo lenta e constante encharcava suas esperanças. Desmancharam-se por completo as ilusões como barquinhos de papel navegando por águas turbulentas. 
E ali estavam eles, quase formando fila. Em ordem decrescente de expectativas, caminhando lentamente para um desfiladeiro desconhecido. Por que continuavam ali? Por que simplesmente não davam as costas e esperavam o veneno se dissolver?
Inesperadamente, ela abriu um sorriso. Havia sol afinal, no quarto da sua essência, adormecida constelação de humores agora se espreguiçava. Felina disposição se acautelava preguiçosa sobre as teclas de marfim. Cansara-se de tudo, inclusive de si mesma. Era tarde demais para deixar-se envelhecer em tristeza aguardente. Melhor seria expandir o que nela habitava como fonte serena e certa.
Eles lá permaneciam em uma desordem calculada, rascunhos de si mesmos, redesenhados milhares de vezes. Mesclavam suas individuais vontades aos rumores de felicidade. Tontos, embriagados, cavalheiros sem damas, enfileirados devaneios. 
Um a um, estendendo mãos, corações, intenções. Abençoados ora com um sorriso, ora com um talvez. Deixavam os vãos do salão com certezas guarnecidas de sonhos. 
Era ela a deusa do nada, guardiã do que não se pode reproduzir, o espelho de todos os horizontes. Parecia muito, até demais, mas era apenas o que lhe concediam na miragem dos seus próprios corações.