domingo, 16 de agosto de 2015

ENTRE MESES E VEZES



Acordou achando que dali só arrastaria mais um dia. Nada especial, nada a rabiscar no diário. Uma data sem indicações de surpresas, discreta presença no calendário. 
Assim foi o dia: tranquilo, neutro, indolor. Não sem sabor, mas aguardando uma pimenta. Então, ela veio. A noite. Suave, de céu firme e outonal. Brisa acastanhada sem sustos. 
Sem atrasos, o humor aninhou-se na leveza. Braços sem nós, abraços a sós. Por ser tranquila, a noite rendeu festa. Cerimônia de anjos sem intromissão nas conversas pares.
Havia um silêncio sagrado, alheio a tudo mais. Um pulsar de sensações que levava o mar mais adiante. Promessas implícitas em palavras não ditas. O tempo passava e tudo acalmava.
Ela deixou de contar os minutos. Já colhia os meses daquela procissão de encontros. Fosse o que fosse plantado, a ela rendia um jardim de felizes momentos.
Sementes eram os segundos. Voando como pássaros, pétalas de novos acontecimentos. Surpresa afinal era ver que raízes já existiam. Não eram âncoras ou amarras, mas apoio e sustento do que se sentia.
Na árvore, balançando ao som do desejo, os ramos alcançavam as notas certas. Harmonia de sentidos. O mar, o céu, o ar que a tudo cobria de vida.
As vezes refletidas em meses. Os meses espalhados nas vezes repetidas. Ela, assim, escolheu, depois de tudo, só ser feliz.

PAR


Sempre que se viam, logo surgia aquela nuvem de poeira. Talvez mera lembrança planando sobre os momentos mais doces. Pó a provocar tosse e encantamento. 
Fragmentos de estrelas ou pedaços de todos os sonhos despedaçados na espera. Valia a pena cada segundo trabalhado em silêncio. 
A explosão estelar nos olhos como magia revelando contos de fadas e outros poréns. Ela era feliz sem explicação. Dizia que o moço não lhe entendia as palavras. Que conversava com beijos e desenhava mensagens estranhas em abraços.
Ele não decorava suas falas, não decifrava seus enigmas, mas em seus braços segredava sonhos.
Não precisava mesmo entender, só aceitar. Deixar as mãos se entenderem em mudez combinada.
Que fossem os dois poetas ou estranhos. O universo com inveja lhes cedia passagem. Fossem esses loucos, dois apaixonados sem rumo, cometas sem órbita. Que fossem um par, lembrete da felicidade, promessa de algo mais.
Abraçados abrigavam o momento com agonia de condenados. Ele revistava os olhos a procura de esmeraldas ou outras cores.
O destino abrira as portas, sem reservas. Prometidos estavam: ele dela, ela dele. O resto era só boato de constelações.

VOCÊ


Você é o que eu não esperava mais
É o café com leite que eu não bebia
O homem que ri dos meus versos
Quem me chama de louca
Só para eu achar graça em estar perdida
Você é o ponto do recomeçar
A manhã estendida em silêncio
Nossas mãos desiguais e completas
É o pedido para ficar
A tarde que começa devagar
Você é a pressa nas dentadas
O mastigar do meu desejo
A espera nos pontos de ônibus
Viagem e companhia
Partida com muitas chegadas
Você é o que eu chamava de sonho
O riso que trago nos olhos
É a passagem do tempo sem culpa
O momento mais sagrado
Você é a falha que tive de cometer
É o entardecer pela janela
A lua em qualquer fase
A revelação dos meus segredos
Começo e fim com direito a beijos
O platônico que desistiu de vez
Você é lembrança em corpo e alma
É a passagem que eu quis roubar
A bagagem que eu quero dividir
A certeza que me faz acordar feliz
Os olhos que me enxergam
O abraço que me faz continuar
Você é o que tinha de ser.

O QUE EU NÃO DISSE


Cansada e sob a pressa da emoção, deixei que a noite me alcançasse. Senti o abraço lunar infiltrar-se em meus planos. Sim, eu tinha uma estratégia traçada, elaborada nas entrelinhas. Mas, de repente, só consegui enxergar o céu encostar no mar. Recebi estrelas como testemunhas. Como não me calar?
Outra vez, pensei em recordar planos antigos, revisitar tesouros abandonados e aceitar a derrota sem desculpas. Recuei sorrindo.
Se fosse possível, não seria tão bom. Se fosse necessário, eu teria mais respostas. Se fosse seguro, eu buscaria novos riscos.
No entanto, aquela verdade guardada para o momento dissolveu-se em segundos. Não era tua. Nem mesmo minha. Só uma justificativa inventada para afugentar o medo.
Engoli as palavras antes que escapassem furiosas. Meus sentidos trançaram redes de proteção sem nós. Para te segurar. Por mim. Só para mim.
Talvez seja apenas egoísmo. Já que culpam tanto as estrelas, que seja assim. Há constelações demais conspirando pelo silêncio, pelo adormecer de fala inútil. Merecemos um acordo: seguir sem pesadelos e nos guardar das esquinas.
O que eu teria dito? Um pouco mais de tudo. Um pouco menos do nada. Teria verbalizado o sentimento, buscado escudo em versos.
O que eu não disse, já esqueci. Ficou pelo caminho de mais um engano. Deixou de existir no momento do teu olhar.

A VOLTA SEM ESQUINAS


Estava sentindo falta. Diria que até cultivei saudades. De um modo que só a nossa língua entende

Meus olhos percorreram todo o caminho do vazio ao horizonte em busca do encontro. Enfim, encontrei a direção. 
Pensei: mas por que não? Abracei o momento como quem se declara ao seu melhor amor. 


Sim, admito. Não fui muito romântica, mas nem precisava ser. Beijei a imagem, acariciei as marcas, mimei até as entranhas. E daí, se sou estranha?


Estava agoniada sem a sua companhia. Carente de sua risada e insensatez. Dei a mão, dei o braço, dei alma e o que coube no espaço do seu sorriso.


Se for preciso, entregarei as minhas reservas. Todo o ouro deste mundo e o bem mais precioso que ainda guardo.


Ah, que bom que voltou. Que bom que chegou. Bem-vinda! Que a liberdade nos ofereça mais momentos de delicadeza.


Estava em falta. Estava me faltando. Estava falhando. Agora me farto de mim. Dos meus próprios detalhes. Das minhas excêntricas revelações. E tudo o mais que deixei partir.


Voltei e eu mesma me recebo. Com flores e alguns segredos. Porque quem mais sentiu falta de mim fui eu.


Nunca mais se vá. Nunca mais parto. Prometo. Não me parto, nem em metades, nem em faltas. Posso contar comigo.

QUANDO TARDA



Olhos nos números. Observo as sutis mudanças na areia do tempo. Grãos arranhando com ansiedade o vidro. Em cacos, compartilho uma espera sem fim. Não importa se serão só dois minutos depois de todas essas horas. O dia passou, ao largo das saudades, como um rio em desalinho. 

Não acoberte sua falha com interrogações sobre a minha rotina. Beije meu silêncio com a culpa dos ausentes. Mesmo que não me queira deixar, a sua falta amarra meu raciocínio. 

Queria contar tudo o que aconteceu e o que não acontecerá sem você. Desejo que o seu mundo pare por mim, em um segundo de egoísmo assumido. Confesso: tenho essa maldade em mim. 

A hora passa,o momento acaba. No amanhã, surgem as primeiras dúvidas. O nó da segurança se desmancha, apodrece a corda que nos prende. Dou voltas com meus argumentos. Estendo as mãos. Chamo por você. Abraço a sua lembrança.

Vivo sem você, mas viveria sem mim? Não quero. Agarro os projetos espalhados. Quanta bagunça temos aqui! Não encontro as palavras, elas já são todas suas.
 
Deito e espero. Construo novos castelos, me finjo de rainha. Nos sonhos, revivo, respiro. Nua. Um, dois, três. Bato na madeira que range o seu nome.

Celebro sua volta. Descubro que ainda nem foi. Só é tarde e a vida tem pressa.

VÃO FALAR


Pouco adianta estender veladas intenções sobre o assunto. Todos sentirão o calor de longe. Dirão que onde há fumaça, há fogo e gente tossindo. Terão razão?

Comece a desfazer as malas e a guardar as melhores lembranças nas prateleiras mais altas. Poupe nossas delicadezas das mãos curiosas e dos olhares devastadores.
 
Feche as cortinas, desligue as luzes, brilhe só para mim. Afaste cobertores, interlocutores e até os mentores. Sejamos objeto do oculto, foragidos do absurdo, defensores de causa própria.

Quando mais tarde, sentirem nossa falta, que não nos busquem de imediato. Negligenciem cuidados, esqueçam nossos nomes, revidem com silêncio nossa ausência.
 
E se alguém levantar a voz para nos acusar, que fique rouco. Que nada mais lhe reste a nos render homenagens. Que sejam póstumas e não nos alcancem enquanto passagem.
 
Sei que vão indagar sobre nosso destino, suas pretensões, minhas ilusões. Serão mais do que detetives, rapinas a nos ditar razões; Buscarão argumentos para nos afastar do abismo. Daqui ninguém me tira, só se for para contar estrelas ou mastigar sonhos.

Vão prestar juramento, testemunhar em falso, só para provocar nossa ira e nos fazer falar. Não diremos nada, mas nossos corpos revelarão marcas já distintas. Não quero que por isso adormeça seu querer. Mesmo que proíbam sua sombra de colorir meu sorriso, não desapareça da minha vida.
 
Esconda-se nos meus braços. No meu cansaço, seja invisível presença. Enquanto devorarmos os dias com pressa e paixão, que eles nada saibam. Que as noites abreviem especulações e se faça silêncio na escuridão.

Mas que vão falar, isso vão...

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

SIMPLES COMO A OCASIÃO



Amanheci com uma certeza: melhor a vida simples do que uma complexa indigestão. Na ordem do dia, só me resta um verbo: simplificar. 

Não citarei o que me vem embrulhado em metáforas. Simples e direta, deve ser minha missão. Serei o que sou, sem verso ou avesso. 
Sou lago. Desmanchar de oceano em ondas. Talvez cachoeira, queda d'água, força e pureza. Transparente, também serei parte da dúvida que cabe nesta história.
Começo a me enrolar de novo, eu sei. Não por minha culpa. São as palavras que sequestram minhas ideias. Na mente, só respondo com sim. nem em vírgulas tropeço.Dormente, me entrego a todas as suas perguntas.
Tem gente que fala dormindo. Eu sonho falando, comungo escrevendo. 
Se o dia parece estranho, camuflado sob uma camada de saudade, eu digo que ainda não passou. Ficaram as horas no meu colo, aguardando a sua presença. 
Simples é não ter mais nada a dizer, não ter mais teorias a defender, nem verdades a impor. Simples é continuar fazendo o que posso, do jeito que dá, na esperança de terminar mais um dia. Depois virá outro, até chegar o momento em que meus olhos terão mais luz do que promessa. 
Eu disse que não seria complicada, mas como pedir isso a alguém assim mergulhada em sonhos? 
Não sei se ficou claro, se enfim consegui simplificar o sentimento. Entenda, por favor,quando digo que é assim: de uma vez para sempre: você.

TALVEZ, QUEM SABE?




Talvez, ela nunca supere. Depois de tantos meses, anda por aí, embriagada de lembranças mal tecidas. Mesmo sem enxergar os riscos, sabe que ainda estão todos lá.
Desce escadas sem calcular a escuridão. Mesmo cansada, evita parar sem precisão. Às vezes, finge descaso e tenta pular os degraus do desespero. Meio que tropeça e quase rola como se fosse impedida de sofrer por qualquer mal.
É, pode ser que ela resista até o fim, colhendo as lascas caídas pelo caminho. Talvez, ela possua a dose certa de razão e loucura. Sem questionar as ordens que lhe vêm por dentro, reage com sorrisos aquele transbordar de sentidos. Que venham os abraços sem fim, os nós sem a pressa do desfazer.
Talvez, não haja para ela mais salvação. Os olhos que refletem a luz, cegam as expectativas. Será dela o paraíso? Terá ela a chave de todos os segredos de amor? Sem mais demora, beija a boca da felicidade como se outra opção não houvesse. Deixa de nomear os dias, pois eles se contam em seu reflexo.
É, talvez, ela nada saiba e por isso sobreviva entre sorrisos. Essa alegria sem nexo, sem tempo estipulado, que não se desmancha fácil. Pode ser que ela resista ao pranto, ao vício insistente das paixões.
De tanto tentar voltar, perde-se nos braços de um rio de amor.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

PARA ALÉM DOS OLHOS TEUS



Prometi não pensar muito. Não olhar adiante do que me reserva o hoje. Cortei os fios que me ligavam a todos os possíveis amanhãs. Saciei minha sede de futuro em teus anseios de tantos ais.
Disse para mim mesma que depois de tudo, nada mais teria importância. Expulsei as indagações que reduziam sentimento a mera presença. Reli teus sinais e assinei cada uma de suas declarações.
Fui feliz sabendo que talvez hoje não fosse. Decidi que as águas dos teus olhos banhariam meu entardecer. Não soube te explicar o que me vinha, assim, tão de repente. Quis repetir tua pele na minha para distanciar qualquer adeus.
Por tudo que fiz, pensei e anunciei, agora me encanto. Tenho mais motivos para continuar do que as lembranças que escolhi. Que seja tolice, que seja insensatez, talvez embriaguez. Que não haja mais salvação para mim, que não me reste mais qualquer porto seguro.
Quero amanhecer em outro mundo, mesmo que não suporte meus passos. Ainda hoje, ainda agora, tenho teu nome em meu desejo. Tuas marcas invisíveis percorrendo meu corpo, mantêm a ligação sem explicação.
O tempo corre e nos empurra, estamos ainda mais perto. Não há o que esperar, recomecemos tudo, do nosso jeito, como no início.
Se disse algo que não te chegou ao peito, deixa que eu repito mais uma vez. 
Só sei enxergar a vida em azul, nas velas que deslizam sobre o mar, no além que se abre no horizonte.Pois, agora, eu sei. Nos teus olhos, encontrei a paz.

NA NEBLINA BORDADA



Tento falar das coisas que me revestem por dentro. Das pequenas bobagens que vêm, de repente, à mente e se perdem na língua. Sei que não me ouve, tampouco percebe o que sopra o vento. Tanto faz, diria. Tanto faria, se pudesse.
Aos poucos, os passos ganham ritmo, invasores do domínio que já se instalou. Não há ausência, nem culpa. Há apenas o espaço vazio de um recomeçar arrastado.
Faremos assim: sigo por ali, que é caminho mais direto. Você vai pelo outro lado, pelo esquerdo que move o coração. Entre logo no labirinto de linhas. Como a ponta solta de um novelo, desapegue-se. Permita-me perder seu rumo. 
Não é que eu não me importe. Na verdade, percorro todos os riscos. Assim faço só para desfrutar de um momento a sós com o destino. Eu e o alfaiate sem hora marcada. 
São tantos cruzamentos que me confundo e desconheço minhas próprias laçadas. O desfazer é tão cansativo que evito novos bordados. De tantos pontos e detalhes me preenchi que não posso mais enfrentar a agulha da indecisão. Alinhave suas intenções antes de me ceder mais tecido. 
Tento mostrar o caminho, a trama do pano mais bonito, mas pouco vê. As mãos ocupadas em novo trabalho, as vestes sendo costuradas como armaduras. Se eu pudesse enxergar o que vem além do dia, também me cobriria de aço. Mas do jeito que vou, linho e flores me servem de vestimenta e sedução. 
Na neblina do seu olhar, novos pontos, outros nós. A névoa fugaz de mais uma tentativa. Só me deixe ir quando não mais restar precisão. 
Dê-me linha antes de corda. Dê-me cores antes das dores. Dê-me o seu avesso antes de terminar a bordar meu coração. 

ANOITECE-ME



Mostre-me as mãos e eu morderei as linhas em cada palma. Sangrarei meu gosto como desejo de muito mais. Que o seu destino cruze na extensão da minha vida, sem desiguais intenções. 
Diga-me quantas rainhas há na sua noite e eu rasgarei todos os véus que encontrar. Tomarei a espada mais afiada para fazer da lâmina meu espelho. Não temerei pela morte desses sonhos expostos em cristal e prata. 
Sopre-me os segredos que ainda guarda nos lábios e eu direi, uma a uma, as palavras que tornarão seus olhos cegos. Que o seu querer seja tão meu quanto a cama em que me deito. 
Revele-me suas luzes e eu abrirei meus olhos para melhor aceitar a verdade. Dos tons que colorem suas íris, farão parte de mim os mais sutis.
Dobre-me em seus braços como as páginas de uma história a ser relida. Seja bem-vindo o seu sorriso antes do sol a desnudar a noite.
Resgate-me dos mesmos sonhos em que persigo o amanhã. Que o hoje sirva como presente e agrade aos olhos e à mente. 
Beije-me em um vir sem partir. Assim, viverei, mais do que contente, o chão e o céu, nesses seus olhos de entardecer.

QUANDO O SOL VIER


]
No meio do nada, entre as nuvens lapidadas pela chuva e culpa, um vão de possibilidades surgiu. Não era um caminho claro ou plano sobre o qual se poderia seguir sem dúvidas. Apenas uma hipótese remodelada, desenhada nos tons de um novo dia.
Ela estendeu os braços, dedilhando no ar à procura de chuva. A umidade desfalecia nos veios da madeira. Ela então sorriu. Quanta água havia passado por ali sem que seus pés tocassem a corredeira? 
Em momento algum, os seus olhos guardaram segredo daquele verão em chuva desfeito. O que havia ali, permaneceria ali. As sombras de um novo esperar.
O eco dos pensamentos anunciava a convicção de um erro repetido. Assim, ela viu surgir aquele que, sem cavalo ou armadura, não rei nem louco. O mar nos olhos a revelar os séculos já percorridos. As mãos despidas de oferendas dúbias. 
No céu, o rasgo de luz. A vida ganhando cores de aquarela esmaecida pelo tempo. De repente, não havia mais necessidade de explicação. Na luz, não existia espaço para mentira ou engano. 
O calor aos poucos derretia qualquer ilusão que não se encaixasse nas linhas escritas por ela. Fosse o que fosse, nada mais importava. Na sua chegada, a chave de mais um sorriso. O sol, enfim, chegara.

QUANDO A CHUVA CAI



A luz atravessa as nuvens, depositando fagulhas em suas ondas. O ar torna-se quase rarefeito, silencioso debandar de folias. Os animais acolhem-se entre agitados prenúncios. 
A menina guarda as bonecas no armário. Detém suas expectativas para depois. Os sonhos ali empilhados como brincadeiras futuras. 
No varal, a roupa balança ao vento. O branco dos lençóis reflete a intenção de paz. Mãos desfazem nós, retirando do varal vestimenta e promessa
Os primeiros pingos chegam ao chão. Evaporam como estrelas cadentes. A água alisa a terra, amacia suas entranhas, renega sua secura. Os veios d'água misturam-se ao entardecer precoce. 
Há luz por todo o trajeto. Mulheres atravessam arcos de jasmim, levando seus sorrisos como graças.O céu revela-se brusco sem azuis delicadezas. 
As mãos antes unidas em oração, estendem-se receptivas e amigas. Abrigam oferendas líquidas que, entre os dedos, escorrem ao princípio sem fim.
Gotas pesadas chicoteiam paisagem e ilusões. Dissolvem-se no vão das palavras represadas em diminutas revelações. Não é tarde, nunca foi. 
A água lava o que já se revelou vazio, o que já perdeu razão. Os dias partem em fluxo contínuo. Mergulhos no destino de quem se permitiu ser real entre mentiras e cortes traiçoeiros. Chove!
No balanço, sob a árvore, uma única flor repousa. Pétalas esmagadas pelo peso da chuva que a tudo toca. A menina corre e recolhe o que nunca será de mais ninguém. Seu sorriso molhado, suas mãos vazias, a verdade sem travas, tudo gira em um segundo. Haverá mais voltas, ela sabe. Por enquanto, entrega-se ao porvir e sorri. Quando a chuva cai.

QUANDO ELA SE FOR



Será ao meio-dia, talvez à meia-noite. Entre os giros do relógio, no vazio das horas. Parecerá ser de repente, um esvaziar de sentido e intenções. Sem tempestades a arrancar raízes. Sem barulho, apenas um sussurro.
Pensará que não houve aviso, mas o anúncio ele mesmo escreveu. Com todas as letras, uma a uma entalhadas no tronco do que cresceu sem permissão. Seiva e lágrimas já terão secado. Vaidade e orgulho já terão apodrecido. 
Nada mais a sustentar as promessas que ela julgou ter lido nos seus olhos. Apenas delírio, esperança varrida com as últimas folhas do amanhã. 
Será em silêncio, sem alarde, sem cerimônia alguma. Ninguém presenciará sua partida, já ignorada sua chegada. O destino não será traçado. Não lhe entregarão flores ou beijarão suas mãos vazias. 
Entre mensagens esquecidas, ficarão seu desejo, seu olhar, seu sorriso, seus beijos. Não haverá pressa porque ninguém prestará atenção aos seus sinais de fuga. 
Sem despedidas, sem olhares hesitantes ao atravessar o portal. Sem passos dúbios em busca do caminho de volta. Sem rotas ou medos.
Um dia, desejará ter brindado suas noites com a alegria emprestada. Sentirá que falhou, que entregou pouco quando lhe deram tudo. Permanecerá distante, perdido em outras ilusões, contando os elogios que ainda tem nos lábios. Assumindo riscos mal calculados, seguirá como puder. 
Talvez, em um momento qualquer, ele sinta que algo se perdeu. Perceba que também teria sido bom com ela. Que o presente oferecido por aquelas mãos não tinha preço. 
Cansado, adormecerá em sua própria sombra. Em sonhos, questionará razões e motivos. Então, será tarde demais. Quando ela se for.

DEPOIS SEM ANTES



Ela revirou as cinzas, acalmando as últimas brasas que teimavam em avermelhar o passado. Ainda podia sentir o calor dos últimos dias, o abraço morno de uma lembrança, o chamuscar da esperança. 
Suas mãos, assim como o coração, esvaziaram-se de promessas. Não havia ali tristeza ou mágoa que durassem mais do que um por de sol. 
No alto da estante, ela escondia o mundo. Na prateleira acima dos seus sonhos, guardava o resumo dos seus dias. Equilibrada nas pontas dos pés, balançou a pouca razão, deixando cair os últimos estilhaços da ilusão. Cortes, manchas, alguma dor, por que não? No chão, o resto das estrelas que mal chegaram a brilhar. Eram apenas lembranças de um sol que não habitou a verdade.
Em volta, o silêncio fazendo reverência à força feminina. Pausas penduradas no varal, secando em lenta aceitação. O olhar vazio de lágrimas ou arrependimentos. Olhos de quem já reconhece o caminho e não adormece em mentiras. 
Depois de varridos, cinzas e descuidos avolumaram-se no canto à espera de esquecimento. Ele viria, mais cedo ou mais tarde. Ela apostava no mais cedo, pois já percebia a tempestade a lhe revirar pelo avesso. Já não caminhava com passos dúbios. Não abrigava mais a tormenta de uma espera. 
Durante a tempestade anunciada,com a já devastada coragem, ela recolheu-se ao mais íntimo momento. Em meio às cinzas, fez poesia como nunca antes. A calma expandiu-se no espaço entre as horas e o sono. Então, ela entendeu que o antes nunca existira. O antes era o nada. E o nada não tinha mais nome.

domingo, 3 de maio de 2015

RECUE TRÊS CASAS E SE CALE



Os dados rolaram sobre o tabuleiro do destino. Dedos ágeis embaralhavam cartas enquanto outros tantos faziam suas apostas. A expectativa era enorme, a adrenalina inundava o organismo e o sangue pulsava nas têmporas. 
Ela ocultou o medo que sentia sob um sorriso que há muito já aprendera a simular. Seus olhos mudavam de cor camuflando os sentimentos que lhe invadiam mente e coração. 
No veludo rasgado da mesa, as cartas caíam uma a uma, em lenta progressão de sentidos. Ela já sabia, pois relia a mesma história durante anos. Aprendera a decifrar os sinais dos jogadores, a identificar os poucos apostadores que jogavam limpo. Eram os que ficavam menos tempo no salão. Esperava que algum dia, um deles lhe tomasse a mão e a levasse dali. Que apostasse nela, com todos os riscos que havia em sua vida. Mas, claro, isso não era o que acontecia.
Noite após noite, inverno ou verão, diante de rostos belos ou não, os dados escorregavam das mãos e o jogo recomeçava. 
Ela ganhou algumas vezes. Ciente de que não ficaria ali para sempre, de que um dia cansaria de errar a mão de cartas, de que talvez merecesse ser feliz. 
As cores das fichas brilhavam no escuro
do desconhecido desejo. Fosse o que fosse, um dia se mostraria. Ela já sabia que podia perder mais do que ganhara. 
Sabia que a fumaça, a música e as palavras gentis confundiam seu raciocínio. Já era hora de retornar ao seu lugar, de vestir-se com a calmaria antes de formar tempestade. Aceitaria o julgamento frio que logo viria. 
Olhou suas mãos e as viu como sempre: limpas. Nem sangue, nem mentiras. Fora inteira, nem tão bela, nem tão especial, mas verdadeira do começo ao fim. Por isso, não se importou de deixar cair as lágrimas junto com os dados. Contaria as casas a voltar e pararia o jogo. Calada.

O AMOR É UM LEÃO DE OLHOS AZUIS



Depois de muito caminhar, revirar o mundo, alcançar algumas estrelas e despedaçar de grão em grão o coração, ela perdeu-se no labirinto das emoções. 
Julgava que, no centro daquele emaranhado de caminhos, existiria a paz tão desejada. Lá estaria a mensagem que não precisaria mais ser decifrada. Dali, avistaria todos os tesouros do mundo em avalanches infinitas. Era só preciso ter força e não desistir, contornando os obstáculos, tateando pelas paredes as verdades que lhe vinham. Então. ela venceria o medo. Chegaria ao seu destino, depois de confundir muitos  nomes. Descobriria, enfim, o segredo em muitas cores camuflado. 
Dali, ela não sairia sem nada. O universo não aceitaria derrotas em terreno tão fértil e sagrado. Fosse quem fosse, talvez o guardião dos seus dias, o desconhecido lhe traria uma nova vida. 
Desorientada e um pouco mais cética do que deveria ser, ela seguiu esbarrando nas paredes que jamais cediam ao seu toque.Perdida estava e talvez dali não saísse ilesa. 
Ao ceder à atração pelo sentir, ela encontrou muito mais do que pretendia. Não era a paz, a glória, a promessa de sucesso perene. Não era a beleza eterna derramada em taça de cristal. Era mais do que tudo isso reunido e jamais por ela visto. 
Sentiu medo, claro. O primitivo instinto de fugir, de correr e cortar os riscos. Mas só se fez sorrisos ao ver o rei, a promessa cumprida de destino compartilhado. 
Nos olhos, certezas renovadas, emoções por ela tão aguardadas. Ali, os dois. Ele, ela. Pelas mãos unidas, corria o mar de todas as possibilidades. Desfeito o labirinto, o amor tecia novos caminhos com as linhas 
coloridas da felicidade. Nos olhos azuis de um leão.

TRÊS LETRAS


Talvez uma abreviatura. A representação dos três reis magos trazendo a boa nova. O trio a embaralhar todas as expectativas que já repousavam.
Na linha superior das palavras cruzadas, não há mais lacunas. Um raio do destino preencheu espaço e dúvida. Não mais confusão de línguas ou ideias. Poupou-se desejo e querer dos três pecados.
Não digo que sejam três segredos, mas milagres em cadência. Vê, ali no meio daquelas linhas, a natureza desnudou-se em pleno eclipse.
Uma sigla, um sinal, as três Marias. Fosse dele o nome ou uma mensagem em código. Melhor seria se fossem o dia e a noite misturando-se em poesia. Poemas virando gaivotas, suspiros e beijos.
Rapsódia em cores fortes, o ritmo acelerado da pulsação, ansiedade pelo que já se encontrou. Três moedas pelos seus pensamentos. Ou atiradas ao poço dos desejos.Três meninos perdidos sob a lua cheia.
Três minutos para os lábios emudecerem. Três letras guardadas nos olhos em sintonia.
A paz. A entrega de todos os músculos no encontro improvável. As lanças abandonadas no domínio do querer. Punhais sem fio. As mãos dadas em abraços.
Três atos da mesma festa. Um trio de convidados sob as luzes multiplicadas em olhares trocados.
Um nome, talvez. O nome dele. O nome dela. O repouso, a encrenca, o querer ficar para sempre.
Lei no céu. Um rei. A trinca de ouros. Sei, mas não revelo. Os três segredos, as letras que não conto.

sábado, 17 de janeiro de 2015

DESPROCURO



A água corre ao contrário, some no redemoinho desconstruído do tempo. O caminho não é de ida. Também, não oferece volta. Talvez, seja pausa e descanso. Talvez, seja mais de mim mesma. 
Meus olhos não focam, não escolhem paisagens além do horizonte. As cores multiplicam-se, em giros contínuos e cada vez mais velozes.Misturam-se, contaminando a hora e a dúvida. Na tontura do momento, tingem a vida de branco. Há paz. 
Não existe nada adiante que convença meus sentidos. Não há procura onde já brotou a curiosa atenção. Agora, arado o solo, a água espera o chamado da semente. Não colho, nem escolho. 
As mensagens são apagadas, as fotos rasgadas, as palavras esquecidas. O branco domina tela, papel, mente. 
O merecido acaso desfaz as pegadas na areia do esperar. Posso agora seguir, tropeçar, confundir os dias e deixar de contar as luas. 
Faço o trajeto inverso das minhas opções, dispo minhas intenções e não antecipo mais desejos. Estranha liberdade. Bendita liberdade.

VALEU



Não sei o que dizer para você. As palavras fogem e se escondem nas entrelinhas das promessas. Pensei em copiar imagens e ideias alheias, mas não posso. Nesta hora, preciso ser original como pecado ou criação. Então, sigo como chuva, alternando sal e açúcar, lágrimas e sorrisos. Julguei mal o seu jeito e desprezei a sua companhia várias vezes, mas você permaneceu firme, desfiando histórias e dias. 
Foi mais forte do que tudo, Senhor. Cuidou do meu caminho, mesmo não me trazendo flores. Tratou de afugentar todos os que não me mereciam. Obrigou-me a dizer "não", a fechar a porta e a não aceitar pouco por não ter mais nada. 
Alisou minha alma com lições que eu não estava nada a fim de aprender. Encheu meus dias com a sua irritante persistência, mesmo quando eu só queria expulsar sua presença e sabedoria. 
Não gostei quando gritou comigo, chamando minha atenção para coisas que eu não queria ver, para os vazios sem respostas. 
Agora sei que você não foi nem bom nem ruim. Foi justo. 
Agradeço por me tornar mais... (alguma coisa...rs). 
Adeus, 2014.

UMA NOITE QUALQUER

Quase hipnotizada, Marina encostou o nariz na janela. O contato frio despertou-lhe os sentidos já entorpecidos. O ar expelido pela respiração entrecortada embaçou a visão que antes transparecia. Afastou o rosto e tocou o vidro com as pontas dos dedos. Ouviu um sino distante e observou o craquelar do cristal. Vidro transformado em flocos macios, esvoaçantes, valsando sob um céu azul profundo.
Se Marina soubesse que a liberdade exigiria tão pouco esforço, teria se apressado no desfazer do destino. Livre, respirava o mundo que, um dia, também a fizera feliz. Lembranças, doces lembranças que faziam seu estômago doer. Ou seria apenas fome?
Era tudo o que lhe restava: a liberdade em uma noite qualquer sem luar. Ser livre para recordar um passado tão breve e divagar sobre um futuro que lhe parecia por demais distante.  Marina sacudiu a cabeça para dissipar a tontura que insistia em chegar. O balanço fez com que os negros cabelos cobrissem suas costas como um xale de espessa lã. Seus olhos adoçados em tons de mel ainda guardavam a essência de uma infância perdida.
Sacudido por uma súbita onda de tremor, o corpo diminuto encolheu-se, agarrado àquele nada que invadia a gélida madrugada. Marina esticou os braços para provocar algum movimento no ar como um maestro a reger intenções.
Por alguns segundos preciosos e fugazes, sentiu-se planar em solitário voo, ainda que desprovida de asas. Assim como em um delírio, parecia ter olhos de águia, ou talvez, a sabedoria de uma coruja. Mau agouro. Era tarde, muito tarde, ela repetiu para si mesma mais de uma vez.
– Não vamos falar disso agora.
Ela virou-se, espantada com a voz que não se apresentava como real. Os flocos de neve ainda caíam formando um manto aveludado. De repente, surgiram dorso, patas e uma bela cabeça ornada por um único chifre. Extremidade revelada como uma adaga sagrada dos muitos sonhos que Marina atrevia-se a guardar. Era dela, o unicórnio de maravilhosa crina, balançando com o vento gelado em noturna vigília.
– Ainda não vamos falar disso, menina.
Marina, seguindo impreciso instinto, fez-se amazona e no seu unicórnio encantado montou. O pouco peso não abalou nem crina, nem sina. Ela seguiu feliz, segurando-se nos pelos que lhe pareciam feitos de seda.
Depois de alguns minutos de êxtase, a música começou, invadindo a noite com o seu carrossel de compassos. Girando, girando, sem pausas, as notas subiam e desciam, acompanhando a risada infantil. Era ela, Marina, menina, que ali confundia o tempo com sorrisos.
– Não falemos mais disso, não mais.
Marina sorriu, concordando com o companheiro de viagem. Não ousou contestar aquela imagem que a distanciava cada vez mais da razão. Preferiu despir-se de qualquer desconfiança, embriagando-se da nova realidade com voracidade.
Com delicadeza, Marina controlava o ritmo do unicórnio. Parecia que qualquer movimento mais brusco faria aquele ser mágico sumir. Fechou os olhos e sentiu a neve cair sobre seu rosto, misturando-se às lágrimas.
Cansada, a menina permitiu-se viver aquela estranha passagem, dando as costas a qualquer receio. Viu-se coroada por um halo de delicadas flores entrelaçadas. Vestes muito alvas tocavam-lhe a pele, cobrindo seus últimos temores. Cristais pendiam de suas orelhas e pescoço como frias constelações brilhantes. Nunca fora tão rica, princesa munida de forças estelares.
Admirada com a beleza do momento e das sensações calmantes que lhe vinham, a garota pensou em despertar do transe. Estremeceu, abrindo os olhos com muita dificuldade. As pálpebras pesavam convidando ao adormecer. Talvez fosse o frio, a cauda do sono a lhe açoitar os pensamentos.
– Não precisamos falar sobre nada disso. Confie, apenas confie.
Os olhos de Marina vidraram, pontilhando uma mira que nunca existira. A flecha aguda da dor perfurou a pouca consciência, desfazendo-se em uma nuvem de torpor.
O unicórnio já amuado não mais falou. Silenciou a magia em galope solene. Marina, pequena, magra assombração do que pretendera ser, inclinou-se, abraçando o dorso do mágico animal. Não sentia mais frio. O contato macio do pelo em seda trançado serviu-lhe, enfim, de acalento. A coroa de flores caiu, deslizando pelos cabelos e na neve afundou. As pétalas espalhadas transformaram-se em pontos de luz. Talvez velas, chamas impossíveis no frio cortante da noite.
Diminuindo aos poucos o ritmo do seu trotar, o unicórnio concordou com o destino. Estancou, relinchando em descompasso fúnebre. O corpo da jovem tombou em lenta procissão sem anjos.
Na estática cena, a menina embriagava o solo com seu último desejo. Ainda que fosse aquela a única vez, Marina teve sua prece atendida. Encantada seria, na mais fantástica fantasia, para toda a eternidade jamais esquecida.
O unicórnio curvou-se em reverência à escolhida da noite. Não era mais uma invenção desenhada em sonhos. Já não precisava existir para aqueles olhos febris. Sua reluzente figura seguiu viagem, cobrindo de estrelas o caminho sem volta. A menina dormia no seu sono de mentira.
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