domingo, 16 de agosto de 2015

ENTRE MESES E VEZES



Acordou achando que dali só arrastaria mais um dia. Nada especial, nada a rabiscar no diário. Uma data sem indicações de surpresas, discreta presença no calendário. 
Assim foi o dia: tranquilo, neutro, indolor. Não sem sabor, mas aguardando uma pimenta. Então, ela veio. A noite. Suave, de céu firme e outonal. Brisa acastanhada sem sustos. 
Sem atrasos, o humor aninhou-se na leveza. Braços sem nós, abraços a sós. Por ser tranquila, a noite rendeu festa. Cerimônia de anjos sem intromissão nas conversas pares.
Havia um silêncio sagrado, alheio a tudo mais. Um pulsar de sensações que levava o mar mais adiante. Promessas implícitas em palavras não ditas. O tempo passava e tudo acalmava.
Ela deixou de contar os minutos. Já colhia os meses daquela procissão de encontros. Fosse o que fosse plantado, a ela rendia um jardim de felizes momentos.
Sementes eram os segundos. Voando como pássaros, pétalas de novos acontecimentos. Surpresa afinal era ver que raízes já existiam. Não eram âncoras ou amarras, mas apoio e sustento do que se sentia.
Na árvore, balançando ao som do desejo, os ramos alcançavam as notas certas. Harmonia de sentidos. O mar, o céu, o ar que a tudo cobria de vida.
As vezes refletidas em meses. Os meses espalhados nas vezes repetidas. Ela, assim, escolheu, depois de tudo, só ser feliz.

PAR


Sempre que se viam, logo surgia aquela nuvem de poeira. Talvez mera lembrança planando sobre os momentos mais doces. Pó a provocar tosse e encantamento. 
Fragmentos de estrelas ou pedaços de todos os sonhos despedaçados na espera. Valia a pena cada segundo trabalhado em silêncio. 
A explosão estelar nos olhos como magia revelando contos de fadas e outros poréns. Ela era feliz sem explicação. Dizia que o moço não lhe entendia as palavras. Que conversava com beijos e desenhava mensagens estranhas em abraços.
Ele não decorava suas falas, não decifrava seus enigmas, mas em seus braços segredava sonhos.
Não precisava mesmo entender, só aceitar. Deixar as mãos se entenderem em mudez combinada.
Que fossem os dois poetas ou estranhos. O universo com inveja lhes cedia passagem. Fossem esses loucos, dois apaixonados sem rumo, cometas sem órbita. Que fossem um par, lembrete da felicidade, promessa de algo mais.
Abraçados abrigavam o momento com agonia de condenados. Ele revistava os olhos a procura de esmeraldas ou outras cores.
O destino abrira as portas, sem reservas. Prometidos estavam: ele dela, ela dele. O resto era só boato de constelações.

VOCÊ


Você é o que eu não esperava mais
É o café com leite que eu não bebia
O homem que ri dos meus versos
Quem me chama de louca
Só para eu achar graça em estar perdida
Você é o ponto do recomeçar
A manhã estendida em silêncio
Nossas mãos desiguais e completas
É o pedido para ficar
A tarde que começa devagar
Você é a pressa nas dentadas
O mastigar do meu desejo
A espera nos pontos de ônibus
Viagem e companhia
Partida com muitas chegadas
Você é o que eu chamava de sonho
O riso que trago nos olhos
É a passagem do tempo sem culpa
O momento mais sagrado
Você é a falha que tive de cometer
É o entardecer pela janela
A lua em qualquer fase
A revelação dos meus segredos
Começo e fim com direito a beijos
O platônico que desistiu de vez
Você é lembrança em corpo e alma
É a passagem que eu quis roubar
A bagagem que eu quero dividir
A certeza que me faz acordar feliz
Os olhos que me enxergam
O abraço que me faz continuar
Você é o que tinha de ser.

O QUE EU NÃO DISSE


Cansada e sob a pressa da emoção, deixei que a noite me alcançasse. Senti o abraço lunar infiltrar-se em meus planos. Sim, eu tinha uma estratégia traçada, elaborada nas entrelinhas. Mas, de repente, só consegui enxergar o céu encostar no mar. Recebi estrelas como testemunhas. Como não me calar?
Outra vez, pensei em recordar planos antigos, revisitar tesouros abandonados e aceitar a derrota sem desculpas. Recuei sorrindo.
Se fosse possível, não seria tão bom. Se fosse necessário, eu teria mais respostas. Se fosse seguro, eu buscaria novos riscos.
No entanto, aquela verdade guardada para o momento dissolveu-se em segundos. Não era tua. Nem mesmo minha. Só uma justificativa inventada para afugentar o medo.
Engoli as palavras antes que escapassem furiosas. Meus sentidos trançaram redes de proteção sem nós. Para te segurar. Por mim. Só para mim.
Talvez seja apenas egoísmo. Já que culpam tanto as estrelas, que seja assim. Há constelações demais conspirando pelo silêncio, pelo adormecer de fala inútil. Merecemos um acordo: seguir sem pesadelos e nos guardar das esquinas.
O que eu teria dito? Um pouco mais de tudo. Um pouco menos do nada. Teria verbalizado o sentimento, buscado escudo em versos.
O que eu não disse, já esqueci. Ficou pelo caminho de mais um engano. Deixou de existir no momento do teu olhar.

A VOLTA SEM ESQUINAS


Estava sentindo falta. Diria que até cultivei saudades. De um modo que só a nossa língua entende

Meus olhos percorreram todo o caminho do vazio ao horizonte em busca do encontro. Enfim, encontrei a direção. 
Pensei: mas por que não? Abracei o momento como quem se declara ao seu melhor amor. 


Sim, admito. Não fui muito romântica, mas nem precisava ser. Beijei a imagem, acariciei as marcas, mimei até as entranhas. E daí, se sou estranha?


Estava agoniada sem a sua companhia. Carente de sua risada e insensatez. Dei a mão, dei o braço, dei alma e o que coube no espaço do seu sorriso.


Se for preciso, entregarei as minhas reservas. Todo o ouro deste mundo e o bem mais precioso que ainda guardo.


Ah, que bom que voltou. Que bom que chegou. Bem-vinda! Que a liberdade nos ofereça mais momentos de delicadeza.


Estava em falta. Estava me faltando. Estava falhando. Agora me farto de mim. Dos meus próprios detalhes. Das minhas excêntricas revelações. E tudo o mais que deixei partir.


Voltei e eu mesma me recebo. Com flores e alguns segredos. Porque quem mais sentiu falta de mim fui eu.


Nunca mais se vá. Nunca mais parto. Prometo. Não me parto, nem em metades, nem em faltas. Posso contar comigo.

QUANDO TARDA



Olhos nos números. Observo as sutis mudanças na areia do tempo. Grãos arranhando com ansiedade o vidro. Em cacos, compartilho uma espera sem fim. Não importa se serão só dois minutos depois de todas essas horas. O dia passou, ao largo das saudades, como um rio em desalinho. 

Não acoberte sua falha com interrogações sobre a minha rotina. Beije meu silêncio com a culpa dos ausentes. Mesmo que não me queira deixar, a sua falta amarra meu raciocínio. 

Queria contar tudo o que aconteceu e o que não acontecerá sem você. Desejo que o seu mundo pare por mim, em um segundo de egoísmo assumido. Confesso: tenho essa maldade em mim. 

A hora passa,o momento acaba. No amanhã, surgem as primeiras dúvidas. O nó da segurança se desmancha, apodrece a corda que nos prende. Dou voltas com meus argumentos. Estendo as mãos. Chamo por você. Abraço a sua lembrança.

Vivo sem você, mas viveria sem mim? Não quero. Agarro os projetos espalhados. Quanta bagunça temos aqui! Não encontro as palavras, elas já são todas suas.
 
Deito e espero. Construo novos castelos, me finjo de rainha. Nos sonhos, revivo, respiro. Nua. Um, dois, três. Bato na madeira que range o seu nome.

Celebro sua volta. Descubro que ainda nem foi. Só é tarde e a vida tem pressa.

VÃO FALAR


Pouco adianta estender veladas intenções sobre o assunto. Todos sentirão o calor de longe. Dirão que onde há fumaça, há fogo e gente tossindo. Terão razão?

Comece a desfazer as malas e a guardar as melhores lembranças nas prateleiras mais altas. Poupe nossas delicadezas das mãos curiosas e dos olhares devastadores.
 
Feche as cortinas, desligue as luzes, brilhe só para mim. Afaste cobertores, interlocutores e até os mentores. Sejamos objeto do oculto, foragidos do absurdo, defensores de causa própria.

Quando mais tarde, sentirem nossa falta, que não nos busquem de imediato. Negligenciem cuidados, esqueçam nossos nomes, revidem com silêncio nossa ausência.
 
E se alguém levantar a voz para nos acusar, que fique rouco. Que nada mais lhe reste a nos render homenagens. Que sejam póstumas e não nos alcancem enquanto passagem.
 
Sei que vão indagar sobre nosso destino, suas pretensões, minhas ilusões. Serão mais do que detetives, rapinas a nos ditar razões; Buscarão argumentos para nos afastar do abismo. Daqui ninguém me tira, só se for para contar estrelas ou mastigar sonhos.

Vão prestar juramento, testemunhar em falso, só para provocar nossa ira e nos fazer falar. Não diremos nada, mas nossos corpos revelarão marcas já distintas. Não quero que por isso adormeça seu querer. Mesmo que proíbam sua sombra de colorir meu sorriso, não desapareça da minha vida.
 
Esconda-se nos meus braços. No meu cansaço, seja invisível presença. Enquanto devorarmos os dias com pressa e paixão, que eles nada saibam. Que as noites abreviem especulações e se faça silêncio na escuridão.

Mas que vão falar, isso vão...