domingo, 29 de abril de 2012

POR DENTRO


E então aconteceu assim. De repente, em qualquer momento imprevisto, sem data marcada. Espaços abrindo-se como queimadas na sua alma. O susto de já ter sido quando nem se preparava ainda para ser. Como negar que ela estava ali: doce, plena e quase inocente?
Sorria e isso deveria ser sinal de paz. Mas não era... ou  quase era, mas algo que desconhecia sossego, que ainda não alcançara a chegada.
Ela corria, por dentro, por todas as veias, pela extensão da sua pele e borbulhava numa felicidade incontida. Mergulhava em seus beijos para tocar o chão dos seus desejos. Seus pés encostavam nas bordas frias e escorregadias daqueles tantos sentimentos que ele tentava esconder. E ela sorria e quase sempre ouvia as palavras que a alertavam para não arriscar demais, para se manter coerente e bela mas sempre na margem. E então, ela só podia gargalhar, porque não era mulher de margens, não tinha esses limites  definidos, nem sabia ao certo o que seria isso.
Ela já estava  dentro e  no mais profundo surgia . Água correndo, alcançando cada espaço, cada fresta, cada fenda desconhecida e só. Ora, redemoinho, ora lago tranquilo. Cachoeira em violenta queda, sem espera, sem licença, correndo, escorrendo, perdendo-se. Dentro, profundo, escuro, sem rumo. 

segunda-feira, 23 de abril de 2012

MINHA ESCOLHA

Te contei segredos porque queria que fosse meu cúmplice

Deixei que derramasse o veneno mesmo que isso comprometesse meu solo

Te providenciei abrigo onde jamais permitiria alguém

Deixei que me cobrisse de apelos mesmo sem poder atendê-los

Te alimentei de sonhos porque sabia que precisavas deles

Deixei que o frio me incomodasse e que o calor não me bastasse

Te dei o que não me pertencia para que não sentisse falta alguma

Deixei que o silêncio falasse mais do que as palavras

Te dei a ilusão de que tudo seria eterno

Deixei que a esperança se apoderasse de mim

Te dei o chão

Deixei-me cair

Te dei o espelho

Deixei-me refletir

Te dei a mim

Deixei-me entregar.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

TORMENTAS NO PARAÍSO


Eu ainda lembro da primeira fagulha despertada, da sede desenfreada, da incerteza congelando tudo por dentro.
Lembro de pular sem rede de proteção, de cair sem tocar o chão, de experimentar inferno e paraíso em questão de segundos.
Lembro de dizer a verdade, mas também de não ocultar a mentira.
Lembro do doce, do ácido, do mais amargo
Lembro do que foi quase e do pouco que ficou pra trás, de todos os riscos, de todos os acertos e dos erros tatuados em mim
Lembro da minha coragem, da minha  esperança vã de mudar de direção, de voltar atrás e não encontrar mais nada
Lembro de sentar e quase chorar e depois rir porque tudo é muito pouco
Lembro do muito pouco que já havia sido o bastante e de que eu queria apenas esquecer
Lembro de dizer adeus, mas sem muita certeza, de escorregar entre as palavras e apagar em cinzas
Lembro do  não, do talvez pendurado na janela da esperança
Lembro de ficar olhando o horizonte , de imaginar o fixo no lugar do mutável
Lembro do que já foi, do instante perdido e de nunca mais lembrar.
Não lembro mais.

FELIZ DE GRAÇA

Ela caminhava assim com aquele sorriso enorme e pouco discreto. Estava tão feliz que tinha receio de ofender alguém. Tão feliz que quase cantava mesmo sabendo-se desafinada, mas arriscou uma melodia íntima, confidencial, contida na sua mente e fugitiva em seus olhos:

Hoje eu não vou sozinha
porque estou tão feliz que já não sou uma só
Vou por onde haja luz
porque estou tão radiante que não quero chocar as sombras
Vou para encontrar alguém
porque  tudo é tanto que não pode ser contido só em mim
Vou seguindo o que não tem explicação.
porque dentro de mim há o mundo todo e muito mais
Vou e te convido
porque até a felicidade pesa um pouco
Vou e te dou a mão
porque te prometi que seria assim
Vou e aceito ainda mais
porque meu destino é este: ser feliz!

quarta-feira, 18 de abril de 2012

NA SOMBRA COM O ESCORPIÃO

Nos dias ensolarados quando há tantas ofertas de luz e calor, esquecemos que ainda assim existem sombras. Essas projeções que se inclinam sem cálculos ou previsões e que dão abrigo ao que tanto queremos esconder. São parte de tudo, nascem da luz e ao mesmo tempo parecem estar sempre lutando com ela.
Os raios de sol que atingem objetos, natureza e pessoas despejam sobre os mesmos o seu contrário: a ameaça de escuridão.
Estar na sombra pode ser bom, reparador e essencial muitas vezes. No entanto, esse aspecto sombrio torna as nossas perspectivas dúbias, inexatas e mergulhadas em um quase caos.
É na sombra onde os bichos rasteiros se escondem, onde procuram suas brechas de anonimato. Muitos velam sua própria sombra, cultuam seus espaços sem luz negando qualquer resquício de calor. E assim, projetam-se dos iluminados, alcançando sempre o vazio por nunca terem o que brilhar.
A vida nem sempre é bela. Nem sempre iluminada com cores fortes e brilhantes. Tem lá suas sombras, seus poços estranhos, seus desejos emaranhados e às vezes perversidades nada sutis.
A luz sempre cobra o seu preço, nem sempre aceita parcelar e então a sombra surge mais forte, em desenhos curiosos, feito um escorpião acuado na sua roda de fogo.
Todo ser que se ilumina também esconde o seu outro lado, na sombra com o escorpião.

domingo, 8 de abril de 2012

PELO CAMINHO

Ela passou a mão sobre a mesa levando consigo o pó e o pouco de tudo que restava dela.
Sentia falta daquela pessoa que vivera tanto tempo dentro dela como uma gestação sempre prorrogada, como um susto antecipado, um galope incerto no futuro. Continha as lágrimas para que não ardessem no arrependimento de um adeus. Sentiria saudades do "nós", das noites eternas que guardavam em segredo. Em estranhas pausas, iria  revelar mais camadas, mais fases que se desenrolam como um filme de arte. Dos longos, dos quase intermináveis. Era assim que acontecia. Uma dança desacompanhada, um compasso a mais perdido. O silêncio imperando solene em transbordantes ausências.
Mais do que falta de ar, faltava-lhe o não querer mais.  Mas queria. Queria tanto bocejar entediada com aquele sorriso e sufocar o riso quando a fazia corar.
Não seria mais feliz daquele jeito tão conhecido, porque mil possibilidades não são nunca a mesma coisa. Era tanta coisa e a vida engoliu.
Se alguém lhe perguntasse o porquê  do riso, ela diria que a razão era a mesma do choro. Era a vida agarrando-se nas paredes do esquecimento. Só assim conseguia abri mão da pressa. E  se acalmava em um colo desconhecido.
Não pegaria mais atalhos. Não correria mais do que os coiotes. Não se aproximaria do fogo pelo fascínio das suas labaredas. Não seria muito ela mesma por algum tempo. Porque o tempo dava voltas para pegar o ritmo certo. E, o tempo agora meio tonto  de tanto não ser, prometia não um mergulho, mas um voo.
Ela, já sem aquele por perto, abdicava do sonho. Entendia que agora a estrada era longa, mas sem possibilidade de paradas, retornos, desvios. Acelerar só produziria acidentes e destruiria as estruturas de pontes recentes. Não era hora de apressar nem mesmo as batidas do coração.  E assim, caminhando, ela  seguiu na esperança do seja como for.