domingo, 5 de janeiro de 2014

DESPEDIDA


Oi, moço. Quando menos esperava, você se tornou ancião e nem me deu tempo de me acostumar com o seu envelhecer. Portanto, para mim, continuará moço. 
Sei que tivemos nossos momentos de tensão, de desentendimento, conf
lito de agendas. Claro que os dias gastaram seu viço e empurraram suas esperanças pelo vão do acontecer. 
Eu sei, não foi totalmente sua culpa. Eu olho para você, sumindo assim aos pouquinhos, bem a minha frente, me tornando mais velha também. Que modo de se despedir, tudo aos bocados como goles mal dados. 
Sei que amanhã ainda acordarei com você. Estará a me espreitar com ares de moribundo, sentindo pena de si mesmo, saudade do que não viverá comigo.
Ah, entendo que precisa mesmo ir. O novo logo ali já começa a acenar. Tem pressa de se exibir. As pessoas aguardam por ele e esquecem de você sem remorsos. Tornou-se obsoleto, velho, inadequado, cheio de lembranças que não se apagam com borracha nem lágrimas. 
Por mim, ficaria mais um pouco. Foi bom comigo, me permitiu reencontros, novos desafios, me livrou de mim mesma tantas vezes. Sinto muito não poder estender a hospedagem. Não depende de mim. Grite com o Senhor Tempo, arrume um segundo plano, um terceiro talvez. 
Sentirei sua falta. Talvez nem tanto, pois estarei ocupada com o outro, recebendo-o com honras e sorrisos. 
Não é ingratidão, 2013, somente a necessidade de seguir em frente. Valeu o tempo juntos. Não me negue um último sorriso. E, por favor, ao sair, não bata a porta.

SONHOS


Tenho sonhos impossíveis. Embriagados contos de fadas. 
Às vezes, um unicórnio me fala. 
Às vezes, um cavalo alado me salva. 
Do dragão jamais fujo, já que dele sou o fogo que escapa. 
As fadas madrinhas são borboletas que me ungem de óleo e inspiração. 
De onde vem aquela bruxa? Dos meus caminhos internos tão sagrados. 
Também te encontro nesse capricho doido. Sorrindo, nos cumprimentamos
com essa tal felicidade. 

OUTRO BAILE

 
Sei que não é certo, mas vim assim mesmo. Faces desnudas, coração disparado, esperança contida. 
Deveria ter usado uma das máscaras que me ofereceram, mas não me caíram bem. Todas parecem uma mistura dos boatos em que nunca acreditei. 
Por isso, este rosto que vê é meu. Estas linhas que se harmonizam e desafiam são minhas também. 
Passei aqui quase por acaso. Um sem querer repetido tantas vezes que já decorei o endereço da indiferença. Tanto faz, diz a plaqueta logo na entrada. 
Bater novamente na mesma porta é uma opção. Minha, também. 
Quem sabe seja hoje o dia? Quem sabe se abra a oportunidade? 
Não me ofereça qualquer disfarce. Não uso máscaras e me despi de todas as fantasias. 
Esse será um outro baile. Quer dançar comigo?


OUTRA SEGUNDA


Ela lentamente se posicionou no seu contrário. Queria ter forças para desafiar o dia para um duelo. Sorriu debochando do que viria, do que se instalaria como a sua realidade. Tinha preguiça, desconfiança, mas nenhuma culpa. A culpa é para os fracos, repetia sua mente.
Era mais uma segunda-feira que se revelava em cinzas. Já passados e finados os dias que pouco valiam. Ela agora contava as horas para mais uma lua explodir em dragões e guerreiros. Salve, Jorge! O seu Jorge, que aos poucos, deixava de ser sonho para sucumbir em crateras.
A chuva anunciava luar desconhecido. A tarde estaria a brincar com suas dúvidas e questões particulares. Pensou em jardins, mas as flores respingadas encolhiam-se sem cor. Lembrou-se de florestas, mas só enxergou as flechas cravadas nos troncos mais altos. Resolveu não pensar, já que agora era toda sentir.
Mais alguma espera e tudo seria noite. Para cobrir a expectativa de algum efeito. Era o moço suspeito, mas sem provas, ela o libertou.
Não devia ser assim, o eleito. Era mais sombra do que presença.
E a chuva a lavar o dia, carregou mais do que depressa, os minutos que lhe entristeciam. Molhada, se fez contente. Já que era essa sua opção para o presente.


CINCO PIANOS E VINTE E UMA PORTAS


 
Era uma casa diferente, nem engraçada, nem torta. Na verdade, estava mais para encantada. Com seus cantos e poucas quinas, abrigava família e sonhos. Ah, quanto encanto pelos corredores!

O lar daquelas cinco mulheres em roda e apenas dois súditos. Eles, cavalheiros não menos importantes, acostumaram-se ao feminino domínio. A casa das cinco mulheres e seus cinco pianos. As teclas vizinhas, as meninas tão próximas e a música tomando conta do que ali se chamava vida.

O jardim mínimo crescia e, sem espaço, invadia tudo o que podia alcançar. Um esboço do que seria um secreto recanto, de onde surgiriam joaninhas pintadas de carmim. Talvez pela explosão de cores e a delicadeza de pétalas, alguma das meninas cresceu achando que a beleza das flores fosse triste porque findava.

As paredes de concreto não deviam ser. Talvez fossem de claves empilhadas e tivessem alguns acordes como pilares. Tijolos não havia ali. Sonhos trançavam melodias e se ouvia de longe contos de fadas transformados em canções.

Há quem diga que aquele castelo nunca existiu e que alguém errou na contagem das portas. Não eram vinte e uma, talvez vinte, quem sabe? Mas a menina repetia a tabuada do três e lá vinha a ladainha – três, seis, nove, doze, quinze, dezoito, vinte e um. Três vezes sete. Três vezes o sete como as cores do arco iris, pois aquela era a família que encantava.

Com tantas portas, havia de existir alguma trancada. Ora, ali não havia disso não. Se chuva não aborrecia, as janelas se abriam hospitaleiras para borboletas e pássaros. As portas não mereciam trancas, pois eram de fato vinte e um portais mágicos.

Enquanto a Rainha Mãe preenchia a lenda de compassos memoráveis, as meninas dedilhavam sonhos que nunca mais esqueceriam. Senhora do império infinito reunia as filhas em volta das pilhas de partituras preferidas. Nota por nota, decoravam os olhares maternos como ostras alquimistas. Depositariam pérolas onde só se via areia. Um grão. Somente um grão e a joia dali brotava. Era mais amor do que valor.

As chaves escondiam-se no vão dos dias. Não tinham serventia, já que ali não se fixavam segredos. Vinte e uma voltas, de todos os meses transformados em anos. Meninas ganhando vestidos de festa, bordando recordações em lenços de renda. Pequenos bilhetes rabiscados com as risadas das fadinhas em sapatilhas de ponta. Cresceram, em sorrisos multiplicados, em romances vivenciados, seguras do amor herdado.

Pianos recebiam escalas e carinhos. Mais um solfejo que amanhecia alegria. Dos arpejos aprendidos, eram vinte e uma as sombras que na melodia se escondiam. Espelhos de cristal, espalhavam reflexos dos cinco pianos. O que havia ali ninguém contou, apenas se revelou.