terça-feira, 30 de outubro de 2012

RENOVAÇÃO

De repente, o vazio. O silêncio invadindo o quarto. Sem música, sem atenção, sem tensão. O inacreditável momento de parar, afinal. Parecia tão distante, tão pouco provável. Uma pausa no fluxo desenfreado que havia se formado desde então.
Ela fechou os olhos para perceber melhor o nada que se instalava sutilmente nas dobras de seus sonhos. Lágrimas umedeceram seus olhos, mas não caíram. Tudo estava presente naquele instante tão silencioso.
Não era o silêncio dos mortos. Não era o vazio dos que foram deixados de lado. Era o limpo, o espaço ampliado dos móveis arrastados, das teias retiradas uma a uma. Podia até dançar porque a liberdade estava posta e disposta ali. As paredes vazias e, ao mesmo tempo, tão repletas de possibilidades.
A renovação emergia de cantos desconhecidos. Lavava o chão de tantas promessas esquecidas. Aliviava a nostalgia grudada nos veios da madeira do tempo. O pó fugia pelas frestas das janelas ainda fechadas.
E ela abriu: os olhos e as janelas. Permaneceu calada e quase paralisada. Receava atrapalhar o trabalho do tempo. Encostou-se na parede, corpo e alma deslizantes. Sentiu frio e segurança. Medo e ternura.
Todo o espaço para redesenhar sua própria história. Escolher suas novas cores, decorar seus enredos e costurar os tapetes das suas verdades. Metamorfose a completar.  A vida para inaugurar mais uma vez.
 
 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

AS PAZES


Ela não vestia branco. Nem mesmo gostava de pombas. De paz, conhecia muito pouco, pois caminhava sem prestar atenção aos sinais e ateava fogo no que lhe parecia calmo demais. Não era intencional, só instinto. Poderia sim, viver em harmonia, de mãos dadas em uma imensa roda. Mulheres coroadas de flores, homens felizes em gargalhadas. Poderia, se houvesse nisso uma precisão, uma urgência maior do que a própria vida.
Contou os cortes ainda recentes, acariciou a pele marcada. Aquela cicatriz em chamas. Sorriu. E a vontade de dançar foi entrando pelos seus sentidos, atravessando suas razões tão bem defendidas. Afogadas decisões. Ritmo profanado. Desejos libertos. De resto, só a música deslizando pelos cantos, convidando para a entrega de maneira quase definitiva.
Não havia mais guerra em seus olhos. Podia sentir o gosto do ontem, do tempero ácido das brigas, mas mesmo com lâminas tão próximas, nada condenava.
Suas mãos buscaram as dele, suas promessas atingiram seus sonhos e as linhas se cruzaram novamente. Destino ou não. Provação talvez. Fosse o que fosse, era paz agora.

sábado, 20 de outubro de 2012

A EXPERIÊNCIA


O laboratório era frio como todo ambiente estéril. Banca-das de aço e vidros de diversos formatos compunham o cenário central. Substâncias misteriosas aguardando misturas inéditas. Aventais sendo vestidos, óculos acertados em rostos quase inexpressivos. Cientificamente elaborado, o painel das sensações trazia sim, hora ou outra, um desconforto aos olhares racionais.
Era ali que pretendia dissecar aquele sentimento que insistia em dominar toda a matéria. Colocaria tudo em uma bandeja esterilizada e com um bisturi cortaria, impiedosa, cada tecido. Tencionava eliminar do próprio peito as raízes daquilo que já não se fazia importante. Ou talvez fosse mais,  algo quase essencial evoluindo feito uma infecção. Teria de raspar, triturar, esfregar células sobre a lâmina e então observar seu esplendor. O microscópio faria o resto. Denunciaria as partículas do cosmos que, para ela, pareciam pertencer ao macro altar .
Tinha as mãos trêmulas como inexperiente analista de emoções tão intensas. Temia deixar escapar algum traço recessivo, só percebendo os dominantes sinais da sua paixão.
Luvas poupavam suas mãos do contato excessivo. Podia perceber as diversas substâncias sendo misturadas, levemente sacudidas em suas veias. Haveria risco de combustão? Certamente que sim, mas não era dela somente o risco. Esperou os minutos estipulados como padrão de reação. Nada. Ou tudo?

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

HERANÇA MATERNA

Encontrei um fio e não da meada mais macia. Quase um arame farpado, garantia certa de cortes e feridas. Enlacei, não cortei, declinei da ajuda alheia. Mãos agredidas, alma amarrotada, lembranças espalhadas. E de todo esse novelo pesado, denso, suspenso e suspeito, fiz minha a armadura que se impôs tão necessária. Ela revela-se sutil quando sorriso, nem mais nem menos perigoso do que qualquer armadilha. Ou se mantém fria como metal, protetor, repelente de qualquer emoção mais forte.
 
As farpas, agulhas, facas, espadas, lanças, todas chegam. Não há como evitá-las. Algumas penetram com precisão cirúrgica, outras se deixam desviar pelo meu olhar ou pela secura de medos.
 
Quando me apresentaram as flores, também me espetaram com os espinhos. Sangrei algumas vezes com intensidade de lava escaldante. Outras tantas foram apenas cicatrizes leves que se camuflaram na pele sem alarde. Ainda sinto a suavidade das pétalas, da lembrança contínua dos cuidados de jardineira. Rastro, ou melhor, rastros do que já teria sido e nem queria mais ser. Explosão repentina. Desapareceu como golpe de machado. Não um golpe de misericórdia, posto que nenhum caminho fácil se abriu.
 
Oposição de astros ou estrelas decadentes. Suma sacerdotisa das noites internas e dias ensolarados do amor. Há em mim essa densidade herdada, a teatralidade de fundo de palco, a desarmonia espantosa de emoções. Há cores mais profundas, a pele clara que se rasga sem temor, a pressão que se eleva, a felicidade na maternidade. Também a inconstância, a imprudência do agir, a expressão arrebatada de quem carregou correntes desnecessárias. O intenso chocar das ondas nas rochas. O impiedoso silêncio de quem sofre e não aceita repartir.
 
Diferenças marcantes me salvam. Colocam-me além do gosto de sangue que sinto. Levam-me a sorrir com ternura e agradecer. Sou tão plena e assumidamente desnorteada que permaneço feliz mesmo no caos. Tormentas não me assustam. Navegadora de poucos mares, mas  conhecedora do profundo oceano. Todo amor.


sábado, 13 de outubro de 2012

RIO ABAIXO

Ela poderia ter ido além. Sabia disso. Sempre soube. Poderia ter seguido aquele caminho feito cega, obediente a um destino incerto e claudicante. Seria feliz? Dificilmente. Mas também não estava feliz agora. Surda aos apelos do seu coração, preferiu orientar-se pelo bom senso. Camadas e camadas de raciocínio e lógica. Ah, a intuição também lhe alertava dos perigos. Suas células refletiam alarmes com intervalos de segundos. Era o certo, era o melhor, era o seguro. No entanto, ela ainda olhava o lado de lá com uma certa saudade amanhecida.
Seus olhos acostumaram-se com o vazio da possibilidade. Não era como uma missão adiada. Era o aborto de planos tão caprichosamente desenhados. Sentia falta do olhar que perdera. Da vontade antecipada que seguia cada gesto. Ela não podia ter medo porque já era tudo tão seu. Como que misturado e condensado a seu sangue. Metamorfose de sentimentos que a tornava ora lagarta, ora borboleta.
Ela preferia ainda pensar que assim tinha de ser. Saudades arrancadas de um momento ou outro. Asas em queda contínua. Agarrada às rochas, com unhas fincadas aos fios da tênue rede que lhe protegia a alma. Não havia beleza nessa renúncia. Um gole de serenidade, talvez. Nada empolgante, mas um certo frescor. Então, ela mergulhou seu corpo e suas expectativas frustradas nesse rio. E deixou que o desejo se esvaisse corrente abaixo como inútil resquício de uma história fadada ao esquecimento. 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

DANÇANDO NO SILÊNCIO


Os pés nus tocando o chão frio. Desenhando pequenos círculos para provar a intimidade telúrica. Passos em volta de mim mesma, como se perdida estivesse, como se nada mais houvesse. Sem música, um silêncio de apogeu reinante. Braços subindo em busca de espaço e luz. Mãos que se abrem e fecham. Brincam de pegar o que ainda não vi.
Sorrisos se abrem. Portas fechadas escancaram possibilidades. Luzes começam a piscar e voltas se tornam laços, sem nós, sem você. O ritmo quase me corrói por dentro. Tenho tantas promessas escorregando pelos meus olhos! E ainda assim, danço. Quase canto. Por um momento, estremeço e cumpro todas as ameaças que fiz.
As pausas alongam-se em meus músculos. Obedientes, eles perfazem o caminho e remontam a coreografia idealizada. Já fui mais sua. Já fui até mais minha. Os compassos se despedaçam, corrompidos por esse silêncio que não passa. Por todas as músicas que teimam em recomeçar em minha mente, encontro seus acordes ainda mornos, aconchegantes devaneios.
Sou assim, a mesma dançarina. Despida de muitos sentimentos que impedem minha harmonia. Descolo de mim as marcas que se infiltram em minha pele como hematomas tardios. É cedo demais para conduzir a dança à última nota. Preciso de mais força para seguir a melodia sem esbarrar nas claves mais perigosas.
A dança prossegue, lenta, tocante, mágica instantânea. Meus pés arriscam pelo incerto, calçando novas cores com a alegria de quem perdoa o próprio destino.


terça-feira, 9 de outubro de 2012

DESENHANDO SUSPEITAS

Aprovo toda  a tua ira. Das tuas maiores virtudes, enalteço mais esta. És ainda mais belo do que quando te cobicei. Não de uma beleza tácita, mas o enternecer de um crepúsculo em chamas. Hei de saber recompensar a miséria de tantas palavras quase malditas.
Não me poupe do teu pesar. Tenho muito mais o que mostrar. Levanto suspeitas, desenho planos, arquiteto desejos. Não há como me negar isso. Sou muito mais cúmplice do que detratora. Muito mais tua primavera do que inverno hesitante.
Desejo me deixar deslizar devagar pela tua vida. Que seja pouco, louco como intensa erupção de vulcão despertado. A lava cobrirá nossas expectativas. Já sobe o calor, o vapor produzido pela impaciência do momento. Não mais minha, nem tua, mas do momento em si.
Já reproduzimos tantos passos que ninguém mais consegue nos seguir. Perderam nossa pista. Deixaram de nos levar em conta. Por que agora eu faria de conta? É real, tatuagem profunda que completa minha pele.


domingo, 7 de outubro de 2012

ELA

Chega de repente. Ventania como sempre. Uma presença quase sutil a princípio. Camuflada em força da natureza, invadindo espaço e tempo. 
Em um só olhar reconhece  todo o território como seu. Não, não é modesta e não recebe ordens de ninguém. Tem os seus princípios básicos e outros tantos atirados à fogueira. Sem pensar duas vezes, embaralha teus sentidos.
Se ela pedir para dançar, já estará dançando. Se pedir para provar, já terá derramado todo o vinho. Se repetir as palavras será  somente porque já se cansou do mesmo caminho.
Não tente compreendê-la e muito menos segurá-la. Ela já não estará em teus braços. Terá partido antes mesmo do primeiro laço. Não sem antes arranhar teus planos e desejos. Não faz por mal. Também não faz por bem.
Quando espalha os cabelos no ar é quase por vingança. Para que não enxergues nada além dela. Para que não haja dúvida do seu domínio. Mesmo que seja tudo dúvida e avesso. Mesmo que ela nada saiba dos teus passos.
Ela ousa fingir te seguir. Mas todos sabem que ela nunca estará na sombra. Buscará artifícios para te tornar leal. Roubará  tuas forças quando menos esperas. Sem arrancar um único suspiro, entre os dentes, cortará tua esperança. E enfeitará tudo com flores. Vermelhas, claro.


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O OLHAR


Momento entre as palavras e o riso. O seu olhar espalhando brasas sobre a neve macia. Suave contraste de cores e temperaturas.
Experimento sabores na ponta dos segundos que despencam distraídos sobre o meu colo. O tempo querendo parar preguiçoso no vão do seu palpitar. Aconchegado e manso, deslizante sentimento como um manto. Nada sagrado, nada profano, apenas seus olhos cobrindo meu corpo.
Tenho alguns segredos fugindo em sua direção. Suspiro ainda mais próxima de você. Porque de nada me adianta a surpresa de querer mais. Mãos que se encostam, temerosas do toque seguinte. Invasoras, delatoras do desejo, cúmplices no perigo emergente.
Suspeitos olham para o mesmo ponto como se atraídos por uma força qualquer. Enroscam palavras entre leves gemidos. Alguma tensão engasga na garganta. Cortantes nãos que se estendem pelo inadequado da hora e do local. Promessas antecipadas que completam vazios que nem se sabia existir ali.
Como corais, abrigam tesouros mergulhados no que ainda será. Olhos que por vezes se desencontram na ansiedade do que virá. Então, vejo você com todas as suas histórias reveladas, refletidas em íris e luz. Mágico caledoscópio.
Deixo de prestar atenção no universo. Concentro-me em não perder, em não deixar ir o instante que se desdobra lentamente. Tudo novo e ao mesmo tempo antigo como se os séculos compartilhassem dos mesmos desejos. Já houve uma outra vez. Já se fez caos e apogeu. Agora é imensidão do mar sem calma.
Sim, ainda posso ir embora. Fechar meus olhos, atravessar a indiferença como lança. Desistir do ficar. Deixar de ser sua. Mas não quero. Já estou mergulhada,  lançada às mesmas águas do seu olhar. Sem naufragar.