quarta-feira, 31 de agosto de 2011

MAIS TARDE DO QUE NUNCA

Nada mais do que espanto. A magia do tempo escorrendo entre os destinos. Cobiçavam corpos e mentes, ateavam fogo em promessas vãs, cuspiam ilusões. Conheciam o mistério do desejo, a química do desengano, a fórmula perfeita da fantasia. Mãos dadas, linhas entrelaçadas. Quantos feitiços existiriam naquela noite?
Iam assim seguindo a noite, suavemente embriagados pela lua mãe. Pediam proteção para suas entidades ocultas, para suas próprias armadilhas. Eram tão poderosos e, ao mesmo tempo, temerosos de seu próprio veneno.
Ela sempre desejara que o destino tivesse um rosto como o daquele homem. Mesmo que não conseguisse se lembrar dele com muita frequência. Buscava naqueles olhos um redemoinho de paixão e confusão. Não entendia porque seus olhos pareciam miragens. Amanhã, apagaria tudo, do nada recomeçaria e a lenda se confirmaria.


domingo, 28 de agosto de 2011

O Mundo Bipolar




Parece que virou moda. A atriz declarou-se bipolar, diagnosticada por uns três ou quatro amigos e buscou a quarta opinião em um renomado psiquiatra. Bipolar. O termo é até bonito, invoca a imagem do polo norte e do polo sul, extremos do planeta. No entanto, a situação de um bipolar não é tão nítida assim.
A pessoa não se descobre bipolar. Não é ela, são suas emoções. Eu diria mais: a vida é bipolar. Quem já não viveu um dia de êxtase seguido de uma noite atormentada? Quem já não se chocou com a bipolaridade do nascimento de um em contraste com a morte do outro? E o clima então? De manhã, frio intenso, meio dia de ventos abafados e à noitinha chuva de verão? Se esperarmos mais um pouco, neva. Isso é bipolar. É chegar do hemisfério sul direto ao norte. É chocar o polo positivo com o polo negativo e tentar tirar daí alguma energia para continuar vivendo quase normalmente.
Para o transtorno psiquiátrico, toma-se medicação. E a vida bipolar, o que fazemos com ela? Ou aceitamos a emoção e o pânico da imensa montanha russa ou vamos enfrentar maus pedaços. Não há como esperar sensatez e equilíbrio da vida. Não depende só de nós. Tudo conspira a nosso favor e contra nós , de um segundo ao outro. Isso não é emocionante? É, mas também extenuante, desgastante, quase degradante.
Enquanto me acerto com os polos alheios e extremos, procuro me equilibrar no eixo, buscando o meio do caminho, onde está a virtude e os mais chatinhos neurônios organizados em fileiras.
Onde estará esse equilíbrio tão desejado? Exatamente entre os polos, no Equador??? Ou será apenas um mito criado pela civilização?

domingo, 21 de agosto de 2011

LINHAS CÚMPLICES

Houve uma vez um casal de amigos. Os dois inspiraram  palavras e assim foi feito. O casal já não existe mais e deu origem a novos casais que também se desfizeram. Assim, caminha a humanidade e seus relacionamentos.

Era. Era uma. Era uma vez. Incondicionalmente unidos. Parte de um todo que já se subentendia em teorias desconversadas pelos corredores.
Musa egípcia, poemas beat. Ele, confuso: livro nas mãos, os olhos na musa. Já se conheciam há tanto tempo! Entre as obscuras mensagens da esfinge do tempo. Ou teriam se lido? Descoberto os mistérios em cada linha escrita. Sim, provavelmente haviam se decifrado até semanticamente.
Caminhavam em cada verso que se inspiravam mutuamente. E se não fosse suficiente, cobriam-se de rimas que nunca se repetiam. Sussurravam como cúmplices, parceiros de roubos impunes. Que falar dos assaltos, da armadilhas inconfessáveis? Eram todos turnos da paixão. Pegadas suaves e felinas, sem medo do despertar. Por que não aceitar a eternidade do momento?
Sempre que se viam, mudavam. Um pelo outro. Ninguém percebia porque era osmose invisível, indissolúvel. O essencial residia a poucos segundos. Não havia pressa, desde que viagem se iniciara.
E era. A era de tudo. Ao som de David Bowie ou de Marina Lima. O mesmo saber que, nem ao menos precisava ser provado. Conviviam entre fogos de artifício e alusões a futuros remotos. Testemunhas do único presente possível.
Encontravam-se reproduzindo sombras e luzes. E quanto mais vibrasse a cor, seus olhos tornavam-se suaves diante de tudo. Enquanto se seguiam, cresciam. Eram duas linhas que se cruzavam lentamente, com cuidado para não causar alarde. E continuavam a leitura, nem sempre silenciosa.
No muro mais próximo, lia-se a mensagem deixada por um ou pelo outro:
"Descubro-te em mim. Pouco a pouco. Se ainda me segues, assim vou. Jamais estes séculos levarão outro nome. Que mal pode haver em escrever tuas iniciais no centro da minha vida? Por todos estes séculos aguardados. Por todos os séculos que virão."


sábado, 20 de agosto de 2011

PELO SOL E PELA CHUVA!

Há dias que são assim: uma enorme nuvem atravessada por raios de sol. Você não sabe se reza pelo sol ou se aprecia a chuva e o arco-íris seguinte. Esperamos tanto pelo dia ensolarado, alguns pela praia, outros pelo mergulho no oceano, mais alguém pelo passeio programado com a família. Ansiamos também por uma manhã tranquila espalhada pela cama em um domingo chuvoso.
Uma das minhas lembranças mais doces e felizes é a imagem da minha janela em uma manhã chuvosa. A goiabeira da vizinha sendo encharcada pelas gotas e os pássaros buscando um improvável abrigo. Uma paz invadia meu coração, minha alma, meu corpo. Não sabia que horas eram. Tinha minha filha ao peito, um lindo bebê que me olhava como sua fonte sagrada de alimento e amor. Então, ali, a chuva me pareceu uma benção inexplicável.
Para amanhã, espero que Santa Clara nos ouça: clareai! Estendei suas graças pelos telhados, pelas nuvens, pelas praias, pelo mar, pelos nossos dias. Beijai nossas promessas de um dia claro e tranquilo. Que as crianças brinquem, que o dia se arraste feliz. Que a vida brilhe como o sol no céu. Que sejamos claros e amorosos, contentes e transparentes.
Pelo sol e pela chuva, que seja um dia feliz! Pois, decidi que acordarei assim: feliz e satisfeita com o céu que se apresentar. Porque o segredo de viver bem é esse: adaptar-se ao que vem com um sorriso.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

AS ESTAÇÕES EM MIM

Encontrei um texto de mais de vinte anos atrás. Reli minhas próprias palavras com certo espanto e ternura. Espantada com a densidade dos sentimentos daquela jovem que eu fui. Emocionada por ainda compreender o que senti, mas feliz porque tudo já se foi. E olhando assim de longe, da distância dos anos, acho que é uma história a ser contada, sem os castelos e sem o final feliz, mas linda por ser tão autêntica e vivida até a última possibilidade.

Quando mostraram o teu coração, eu já estava cega. Ainda assim, insistiram em te explicar em negativas. Mais de uma vez. Centenas de vezes, revelaram um conteúdo vazio, sem interesse algum. As palavras eram de uma precisão possível só a terceiros. Mil faces foram descobertas, checadas, devastadas. Tua vida inteira dissecada sobre uma mesa fria.
Depois de horas, gritaram qualquer coisa. Questionaram teu nome, teu interesse, teus passos. Comecei a perecer com medo do que me diziam. Minhas folhas trocaram o verde por tons acobreados. Fui me tornando outono.
Do meu cérebro, arrancaram tudo o que possuía teu nome. Fui ficando vazia, sem possibilidades. Prenderam-me os braços, já que eu não os cruzava. Mas, ainda falava e povoava o ar com mil lâminas afiadas. Nada detinha minhas palavras.
Por medo de novas ameaças, preenchi minha mente com fantasias. Fingi renúncia e traição. Que eles não enxergassem qualquer ponto de luta em tudo aquilo. Que eu conseguisse enganá-los até o fim.
Contentes com o meu abandono, ladearam-me de flores. Pude sentir os espinhos nos caules. Eram rosas. Vestiram-me de branco ou qualquer outra cor. Na ignorância dos meus olhos, conservei o negro em minha mente. Pintaram minhas faces, meus olhos e lábios. Disseram que tudo estava bem, que eu seria feliz.
Contaram-me lendas gregas e outras tantas romanas. Aprendi nomes de deuses e ninfas. Injetaram-me sangue novo. Redecoraram toda minha mente com cores vivas. Então, descobri, tarde demais, que tua lembrança estava aprisionada em mim. Longe, na mais alta gaiola.
Tentaram te mostrar evidente demais, sem possibilidades de perdão. Apresentaram-me um beco sem saída. Entreguei-lhes todos os meus sonhos. Só então recuperei a visão.
Sem sonhos ou fantasias, sem minha sagrada cegueira, era impossível fugir da realidade. Eles ali expondo tuas ideias , declarando tua culpá, tuas traições ignoradas por tanto tempo. Buscavam em mim a mais profunda mágoa para incriminá-lo. Estavam longe, longe como um enigma sem olhos.
Os momentos seguintes arrancaram minhas raízes. Meus cabelos foram cortados em uma noite fria. Já era inverno e minhas folhas apodreciam.
Gritaram todos os teus caminhos contra mim. Contaram teus passos sobre o meu entusiasmo, da tua indiferença, do teu silêncio, do teu abandono.
Arranhei mãos, cortei cordas, amaldiçoei-os até o fim. Havia palavras pulsando dentro de mim. Por mais que surgissem provas do teu distanciamento, por mais que pronunciassem tuas palavras como mentiras, tudo poderia mudar e mudou.
Então, ao terceiro dia de minha inexistência, atropelei todos os risos, toda descrença e olhei para tua gaiola. Quando enxerguei teus olhos inalterados em tua prisão silenciosa, reencontrei minha força. Podia ser miragem, ilusão, um mundo de mentiras, mas me manteria viva.
E não sei o que houve. Já não sei o que há. Se será, desconheço teus passos. Não posso responder por todos os séculos que virão. Sei apenas que o agora parece eterno e belo. O amanhã permanecerá intacto como um esfinge sem signos, quase na próxima esquina.
Todos os dias passarão. As folhas trocarão a seiva por uma última queda. Depois será outono e virá o inverno. O frio castigará minha vida e levará meus sonhos. Eles voltarão. Nada há a se fazer. Nem mesmo o registro da dor e da alegria superará a ignorância do amanhã. Somente o sentir, imune a qualquer tempo, saberá calá-los. E mesmo que minhas palavras, rimas e metáforas sequem, permanecerão em mim como nasceram. Serão teu nome, o meu sentir.



terça-feira, 9 de agosto de 2011

RITMO OCULTO

Possuía ares de dançarino de tango, desses que tumultuam salões inteiros e enchem de exclamações as bocas mais rubras. Uma mancha de cobre nos cabelos e palmas sempre úmidas. Seus passos descreviam um caminho incerto, mas convidativo. Algo de rude a lhe cobrir os olhos. Era como um vendaval desvendando mistérios alheios. Atingia as raízes mais fortes sem perceber porque o fazia.
O corpo não lhe bastava na terra. O ar não lhe enchia todo o ser e a água não lhe apagava o calor. Nem mesmo o fogo mais genuíno lhe tocava a pele.
Era assim sua própria inspiração. Os passos levando sua vida no vão de palavras nunca questionadas. Às vezes, enganavam o hábil dançarino com promessas e assim o tombavam. Sucediam milhões de tropeços, quedas e dores. Mas, suas pernas fortes o erguiam como um grande carvalho emergindo do solo árido. Houve dias em que lembrava cimento, asfalto, concreto. Tornava-se inflexível como suas próprias paredes. Em outros momentos, a areia caía-lhe no rosto e o fogo abraçava seu coração. Ardia como se fosse tomar a direção certa, como se fosse descobrir o mistério, como se, então, a verdade fosse sua.
De repente, um compasso qualquer lhe pareceu estranho. Não sabia mais dançar. Cercou-se do silêncio e interpretou todos os segundos seguintes. Acharia o momento certo. Acreditava em seus passos, na sua própria essência.
Após horas de agonizante espera, encontrou o compasso certo. Ardia de expectativa. Queria saltar ou correr, mas deveria apenas dançar. As notas voltaram a lhe parecer familiares logo nos primeiros passos. Seus pés dançavam, revelando um novo ritual.
Guardou todo receio na palma das mãos e continuou a obedecer o ritmo que surgia quase o rasgando por dentro.
Restava-lhe toda a madrugada. Todas as horas, minutos e segundos eram só seus. Era ainda um dançarino de tango. Desses que tumultuam salões inteiros e colhem suspiros pelos cantos. E na palma úmida, uma nova linha nascia.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

GENÉRICO

Tomo medicamento genérico. Confio, pago e engulo. No entanto, torço meu nariz para qualquer generalização. Os britânicos são pontuais. Os franceses são esnobes e não tomam banho. Os alemães são frios. Os suíços corretos e chatos. E assim por diante. Se não se divide o caráter por nacionalidade, surge a subdivisão por gênero: homens não prestam, mulheres são complicadas. Todas??? Tudo farinha do mesmo saco... saco de falta de criatividade.
Minhas digitais são únicas, meu DNA especial, e assim é com todo mundo. Ninguém é uma cópia, até que o clone realmente seja uma realidade, eu não discuto. Pessoas são assim ou assim não são. E algumas pessoas nem pessoas são.
Te aceitarei com toda sua pouca semelhança comigo, com todos os teus traços genuínos e pouco familiares aos meus olhos. Te amarei ou odiarei por tuas qualidades e teus defeitos ou por tudo isso misturado. Mas não me atirarei desse abismo porque todas as arianas são asssim e se ariscam. Somos mais ou menos parecidas, temos mais ou menos os mesmos gostos e tiques, mas não estamos na mesma paleta de cores e nem na mesma cartela de comprimidos. Aí está a beleza da nossa convivência - cada ser humano é uma descoberta única e distinta.