Bastaram os primeiros acordes de uma velha canção para levantar
o véu das lembranças. Era um capítulo esquecido, abandonado à própria sorte,
condenado à inanição e escravizado pelo tempo. Metodicamente dobrado em mil
partes para caber em uma gavetinha lá no alto, longe de mãozinhas curiosas.
Quem já não teve uma paixão platônica? Dessas que nos fazem
corar sem qualquer aviso? Dessas que deixam incrédulos os mais românticos
cidadãos?
A minha, talvez única, foi coisa dos anos 80. Por isso, a
música despertou sua lembrança. Falo de um tempo em que não havia internet,
essas facilidades de e-mails explicativos e mensagens instântaneas. Um tempo de
demora nas respostas, de ausências mais sentidas e de cartas. Sim, cartas.
Ah, nunca tinha me visto assim tão donzela do século XIX, tropeçando na saia do
meu vestido e me abanando com uma carta manuscrita. Isso, letra cursiva sobre
papel, não na tela do computador.
Tudo começou com uma foto vista pelo meu... aham....sei lá.
Não nos encaixamos em nenhuma definição de relacionamento. Nem amigo, nem
namorado, nem amante, nem inimigo. Ah, será então meu querido desconhecido.
Quando meu querido desconhecido viu minha foto 3x4, preto e
branco, com 12 anos, caiu na besteira de elogiar minha imagem. E se as notícias
não voavam naquela época, pelo menos correram o mais rápido possível e chegaram
a mim. E eu o convidei para minha festa de aniversário de 13 anos, com um
convite de tema quase infantil. Esperei, ele não veio... os amores platônicos
nunca vêm. Isso é um fato.
Trocamos pouquíssimas cartas. Quer dizer, pouquíssimas da
parte dele e um lote maior da minha. Isso se repetiu em outros relacionamentos,
ou ensaios de relacionamentos o que me tornou uma pessoa que não espera
correspondência ou troca de mensagens. Eu escrevo, mando e-mail, se houver
resposta, oba, se não houver, acho normal. Pode ter sido chato, mas agora me
livra do peso da expectativa.
Pois, os anos se passaram e não obtive mais rastro algum do
meu querido desconhecido. Às vezes bate uma brisa de nostalgia, de saudade de
uma inocência que não me acompanhou... às vezes, me pergunto se algum dia, em
algum lugar, em alguma circunstância nos encontraremos, nos olharemos e caíremos na risada, numa estrondosa gargalhada de tão ridícula a
nossa não-história. E escreveremos juntos um parágrafo de encerramento, que não
seja “felizes para sempre”, mas "eternamente ligados pela impossibilidade do
tempo e do espaço". Finalizaremos com um beijo, casto, claro. E seremos felizes,
sim, cada um pro seu lado, reescrevendo sua própria vida.