segunda-feira, 30 de setembro de 2013

DESATENÇÃO

Nem mesmo o sol era o centro do universo. Tantas estrelas, cometas, planetas e aquela poeira sideral ali espalhada em possibilidades. Por que então teria o monopólio da atenção? Vertigem de querer mais, desejar demais, encontrar sustentação para um talento qualquer. Domínio impróprio do olhar que nem lhe direcionado era. Tolice de menina, já dizia o outro alguém lá palpitando. 
Um ou outro comentário causavam empolgação. De fato, totalmente esquecida não era. Mas de tanto fazer pingar tempo e sentimento, seu espaço lhe pareceu inadequado e pouco. Queria mais do distante ofertado. 
Erraria de novo, com certeza. Já que previsões de tempestades já começavam a ser surgir. Leiam meu destino, pedia àquelas mulheres de olhos oblíquos. Intercedam por mim, suplicava aos santos que lhe velavam em transe de ausência. No silêncio, adormecia, escondida e assustada com essa coisa de nada mais ser. Misturada a tantas outras lembranças, por quanto tempo duraria aquela história tão curta e rasa? 
Como uma criança, teimava em se fazer ver. Não nascera para simplesmente no canto amontoar vontades. Entendia a vantagem da discrição, mas não conseguia se deixar invisível em cordas de cristal. Para que destino estavam sendo traçadas aquelas linhas na palma da sua mão?
Quieta, mas com os pés quase a sapatear. Silenciosa, mas querendo assobiar. Como um moleque, queria se sujar de terra, talvez barro, em lama ser reduzida. Quem sabe maculada, a história não se repetiria tão insossa? 
Em vão, tentou reter sensações e emoções. Um sorriso escapou pelas frestas daquele olhar aguardado. Aos poucos, prestariam atenção. Em um compasso da canção, uma pausa abriria espaço para um acorde novo. Então, acordariam, sem preguiça para olhar seu mundo. Direto e fundo, como se nada pudesse mais existir sem ela.
 

sábado, 21 de setembro de 2013

AO PRIMEIRO SINAL

Assuma agora que as coisas estão calmas. Vê lá, o mar mal se agita. Ondas  se escondem na profundeza sem fim. É a hora de assentar, de recolher armas e conchas. 
Não perca seu tempo tentando apagar essa mancha aí. Ela não sairá nem com toda reza brava que puder arrancar do seu peito. Só não lhe dê importância porque ela, de fato, não tem a mínima. Deixe-a aí corroendo a madeira passada e apodrecida a discutir mágoas com as algas daninhas.
Posso contar com você agora? Não para me fazer contente, muito menos feliz. Só para cobrir o esquecimento que vem logo depois daquele horizonte. Não preciso de muitas palavras. O seu silêncio já me basta. Dele reconheço o tagarelar da mente, cheia de novas ideias, de novos projetos, de novas felicidades.
Pise na areia e não se preocupe com as pegadas. Elas não permanecerão nem o suficiente. Não o culpo se não puder ficar. Eu sei que é quente e pegajoso  o momento de transição. Tão pouco espero que reaja com bravura ao menor sinal de perigo. Basta que me olhe e sinta o que ainda nem posso dizer.
Não o culparei ser for embora, nem cobrirei seu nome de ameaças. Só quero que assuma o que agora leva o seu timbre. Depois, a gente programa outra vida. 
Ah, eu sei, claro que sei. Não o conheço. Não me conhece. É uma espécie de lenda que nunca chega. Não abraça, não sustenta o diálogo no presente. É personagem do futuro, indecisão de um escritor temperamental. Por isso quero tanto que tome posse do seu papel, que atue como nenhum outro o fez. De verdade, de alma e em doses corporais. 
Eu sei que é pedir muito a um estranho, que nem sequer conheço nome ou rosto. De repente, nem existe. É, eu sei. No sonho, também não pretendia ficar. Será que sonhei mesmo? Ah, deixa pra lá, vamos limpar a areia dos pés e absorver a maresia da expectativa. 
Olha o mar, ainda ali, calmo, infinito em água e futuro. Não é lindo? É todo nosso, sal, areia, em verde esperança. É o começo do que ainda se revelará. Vem, assuma antes que eu me afogue, antes que me falte ar e sonho. Seja esse todo, esse mar em amar. 

sábado, 14 de setembro de 2013

PIOR DE TRÊS


Acostumada que estava a não dar acolhida para mágoa ou rancor, lamentou não poder apressar o tempo. Como todos, ela queria a facilidade do esquecimento e a leveza de não se ferir. Para se deixar vazia de negativos, precisava das horas generosas. Ali,  permanecia sentada, rendada em flores, atenta às mortes que nela aconteciam. Assim tinha de ser. Reviver para enfim esquecer. 
Não era fácil ser pétala onde se esperaria espinho. Ser indiferente não era uma opção. Conhecia todas as consequências porque já trilhara aquele caminho. Algumas vezes, sozinha, acompanhada, a pé, de coração. O acúmulo de tais sucedidos, tão mal embaralhados,  é que lhe fincava o brutal momento na memória. Como reaver os pássaros do seu tão explorado otimismo?
Deixara o primeiro de todos ser banido pela sua convicção de felicidade. Um erro, uma experiência, lições tomadas e aprendidas. O segundo, ela tentou soltar mas era escorregadio demais para ser expulso de vez. Assim, fez morada em fantasias e demarcou área de aproveitamento emocional na sua vida. Levou meses, cruzes, pesares e, por fim, todos os amores prometidos. Foi-se de vez. Ela, então, sentiu-se forte, de sorriso renovado e boa vontade estendida. Fôlego de escalar montanhas, coragem de desbravadora de intenções alheias, atenção de quem dorme para sonhar. Claro que se perdeu de novo, sem bússola, sem água, sem provisões. 
Quando pensou ali encontrar abrigo e paz, o tecido do sonho começou a esgarçar rapidamente. Estava no mato, na selva, cercada por feras e perigos sequer imaginados. Mas ela ali queria ficar, confiar, superar. Não importava que a batalha não fosse dela, já estava se pintando para a guerra inteira. As mãos cheias de urucum, pronta para mais uma camada de ousada sintonia. Sua alma embebida em cores que nela se faziam invisíveis. 
Não houve batalha. Pelo menos não para ela. Escolhesse outra selva, outro território que não fosse aquele. Porque ali já não havia espaço para suas asas e sonhos. Ela recolheu o melhor de si  já ofertado em altar pagão. Nem lua, nem sol. O solo brilhava em pequenas conchas espalhadas, estrelas que não lhe poupavam os pés. 
Teceu despedida como quem já se esqueceu da mortalha. Enfiou os dedos na areia para ter certeza de que reconheceria para sempre o desagrado e dele não mais provaria. Lançada a flecha, em três já partida, o silêncio rompeu-se em abandono. Dali não se revelaria a culpa, nem mesmo a dúvida. Na conta que se desfez, o melhor dos três nunca existiu. 

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

DEIXAR IR


Cortou nomes, descartou fotos, anulou cheiros e gostos. Empurrou mesa, cadeiras, dias e noites para o canto mais distante. Se houvesse sótão, ali estariam guardadas lembranças e cicatrizes. 
O piso continuava riscado e sujo. Estrelas não deram conta de iluminar tudo. Era chão, devia ser mesmo assim: encontro com o real e a nua revelação. Algumas pegadas permaneciam visíveis pelo corredor. Logo a água dos acontecimentos tratariam de apagá-las, lavá-las sem nada argumentar. Alguma poeira a provocar tosse e arrependimento. Havia muito a fazer. Varrer ilusões, ocultar os cadáveres e mazelas do dia, era tudo o que ela queria. 
A impaciência ordenava mais rapidez e menos tolerância. Já devia estar tudo acabado mesmo antes de anunciada a primeira palavra. Que tivesse engolido as sílabas para que não mais houvesse dúvidas. 
Arranhar as paredes não traria alívio algum. Então, esfregou pele e fúria nos vãos e senãos. Ferida, exausta, em brasa, aquietou-se junto ao vazio que lhe convidava para uma última valsa. Rodopiaria sem compassos desperdiçados pela sala, pelos quartos, até cair tonta. Não mais sonharia assim, mas também não fecharia todas as portas e esperanças. Havia algo ali a ser explorado, arejado talvez. 
Abriu as janelas. A luz violou dor e ressentimento. Seus olhos acostumaram-se logo com a multidão de cores. Sentiu o vento entrar e colher cada uma das suas lágrimas. Até aquelas que não havia derramado. Era tão tarde para receber visitas. Era cedo demais para deixar de convidar sorrisos. 
Deixou ir vento e lembrança. Todas as expectativas de um distante momento. Libertou a si mesma. Sem amarras, foi a primeira a cantar. 

CORRENTEZA



Não sentiu quando começou. Nem ao menos percebeu o movimento sob os seus pés. Pressentira talvez, mas não tinha como voltar atrás. O caminho estava feito, a trilha traçada em seu destino. Quando o tremor surgiu, causou espanto mais do que medo. As rachaduras ganharam extensão, se puseram ao largo com poderes de um vulcão há muito silenciado.
Ela não teve onde se apoiar, se agarrar ou mesmo argumentar. O melhor de tudo está para começar, dizia a canção ao fundo. Se aquilo era o melhor, que venha logo o apocalipse, pensou. 
Diante dos pequenos abismos que se formavam em seu coração, ela pulou com coragem e esperança. Esperava sim que não tivesse sido tudo em vão. Que ali tivesse plantado algo que superaria o tempo. Nem que fosse só mais uma razão para não ter que pedir perdão. 
Do fundo, veio a água borbulhante. Presa no útero do mundo, tudo invadia agora. Transbordava sentimentos e nenhum obstáculo temia. Contornava cada um tal serpente, rente em noite ausente. Esfolava pele e bondade em cada canto e quina aguda daquele gente. 
Era tanta água que, ela pequena em coerência, deixou-se levar. Não poderia se afogar, já que aprendera a nadar. Nem isso fazia agora. Preferia entregar-se nos braços daquele mar. Boiar e à tona retornar. 
De repente, o riso lhe tomou a boca e a cintura, convidando para a dança. Era muito mar, nem tanto amar. Venha, sereia e estrela, que o teu lugar é em outro aguardar. As notas misturaram-se com as gotas e o sal. A pele arranhada e cansada, abriu-se em feridas que só mesmo o tempo haveria de curar. 
Decidida e sem lágrimas, ela se pôs a pensar. Que correnteza era aquela a lhe tragar? Que dimensão mais estúpida essa de não se contentar jamais? Então, água e sal serenaram. Nem ondas, nem maremotos. O silêncio dela fez ninho e paz. Sem roupas, sem máscaras, em um desapegado adeus. E aquela certeza, sem tristeza, de um dia recomeçar. 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

AMANHECER

Deito minha cabeça no teu peito para escutar além do amar. As ondas invadem a madrugada chocando-se contra a ausência de tempo. Nossas horas se vão, uma a uma, emprestadas às saudades. 
Termina o prazo, aumentam as dobras nos lençóis. Há espaço demais entre os travesseiros. Silêncio para não acordar as lembranças recém tecidas. Hora de levantar, de deixar ir. 
Não podes ver, mas sacudo os pensamentos até que a tontura embaralhe ordem e senso. Te prendo em meus sonhos para te soltar na vida. Faz sentido para mim. Libertar me dá o mesmo prazer que dedilhar pele e alma. 
Meus passos amanhecem lentos e indecisos. Sem direção certa, sem projeções ou sombras. Acompanho de perto, eu gravo gestos, recolho palavras. Para não me esquecer desta parte que se vai de mim. Nem desconfias o quanto me arrasta contigo. 
Entre um gole e outro, esfrio desejo e pressa. Café, leite e sorriso, oferecidos. Beijo, abraço e algo mais que vou deixando levar. 
O dia começa pelo avesso. E no verso, já me antevejo.

domingo, 8 de setembro de 2013

LIGA


Vontade de ligar traços, pontos e estrelas. Liga. Perde o número dos toques. Suspira e deixa a calma sair pela porta. Há todo o tipo de nó prendendo o desejo à cadeira do esperar. 
De saudades, tece todo um manto para a noite que se aproxima. Reconta os pontos, aperta a linha, suspende um suspiro. Suas mãos tremem com a ausência das dele. Deslizam no vazio desejando pele e acolhimento. 
Recolhe inúmeras estrelas na imaginação. Pede e espera ser ouvida. Como se o tempo fosse encolher a qualquer momento. De repente se pega sorrindo. Fecha os olhos, como qualquer naufraga e sente o seu cheiro. Seus sentidos alertas cravam punhal no tronco da árvore do desejo. Desenham suas iniciais, esculpem seu rosto para que nada mais se perca em lágrimas. 
Se ela pudesse, faria as horas correrem. Elas ainda grudam como folhas, lembretes dos beijos e promessas subentendidos no olhar. Sem explicação, sem lógica alguma. O caminho iniciado meio por acaso, tropeçando em medos e cortes. Há mais, muito mais força nela do que um só olhar pode perceber. A delicadeza não teme craquelar. A gentileza não perece por ansiedade. 
Mais alguns passos adiante. O zumbido aumenta, é o pulsar das veias nas têmporas, sangue recuando, poupando-se para o que virá. Ela apenas sabe, balança a cabeça espalhando cabelo e pensamento. 
Conta os dias nos dedos. Sorri para o espelho, riscando pressa e tormenta. Toca vidro, desliza pele no mármore gelado e aguarda. Nada mais a temer. Nada mais a guardar . Dentro dela, toda a força que, felina, invade a noite sem se importar se há lua ou não. 


terça-feira, 3 de setembro de 2013

SE EU PUDESSE ENTRAR...


Vejo as horas acumuladas no canto do dia que há muito se tornou noite. Começam a juntar poeira, suspeito que seja poeira de estrelas. Dos sonhos embrulhados em muitos papéis que revivi. 
Tenho reação alérgica ao tédio das outras semanas, dos meses camuflados no esquecimento. Espirro. Alto o bastante para despertar fantasias e possibilidades. Visto-me de luz como se nada mais existisse na escuridão. Será que posso? 
Encosto corpo e mente na parede fria para fazer a febre baixar. Grau por grau como grãos do que não se pode deter em mim. Depois de derreter argumentos e tudo transformar em lava, reservo o concreto para o amanhã. Não tenho pressa ou medo. O calor me mantém confortável e sonolenta. Entregue, quase sem ação.
Olho para o caminho à frente, o portal que se abre lentamente diante das minhas expectativas. Não tenho como evitá-las, só atenuo sua força sobre mim, vestindo a capa do bom senso. 
O vento parece me empurrar avante chicoteando cabelos e passos. Eu vejo tudo acontecer, pressinto o que ainda está por vi e paraliso. Diante do tudo que experimento por antecedência, me privo. Sucumbo ao sussurro do improvável. Hora de seguir. Hora de se deixar ir. Ah, se eu pudesse entrar...

sábado, 31 de agosto de 2013

A SEGUIR

Vamos por ali, disse o cavalheiro confiante. Ela, por sua vez, não titubeou em seguir por aquela estrada. De mãos dadas, parecia mais fácil desviar das pedras que tantas vezes lhe feriram os pés. Sim, andava descalça, desarmada contra qualquer obstáculo. Era toda inocência, mais de alma do que de corpo. Imaculada esperança de se fazer entender.
O caminho não parecia infinito. Havia ali uma poeira subindo, confundindo o horizonte, como a união de terra e sonhos. Ela nem pensou em buscar outras rotas, atalhos e descanso. Em seu coração, consultava bússola e oráculo. Era entrega, risco e um pouco louca também. Porque nem tudo se explicava com a razão. 
Os passos aos poucos encontraram sintonia. Como cúmplices, ouviam o mesmo pulsar, o mesmo soar de sinos à distância. De tão juntas, as mãos já se reconheciam como única matriz. As linhas das palmas emaranhadas, entrelaçavam destinos. Tarde demais para qualquer possível volta.
Saber que podia seguir sozinha, ela sabia. Conhecia trajetos mais perigosos, crateras da lua e pedaços do inferno. Já tivera seus dias de batalha sangrenta, dragões ensandecidos, ameaças constantes. Já vira o desejo de ponta cabeça, a alegria desaparecer por completo, o viver se perder de repente. Tudo já presenciara, mas negava guardar cicatrizes. No máximo, acumulava fortaleza. O resto era só vontade de seguir em frente. 
Por tudo isso, era companhia de verdade. A mão era delicadeza e confiança. Só podia se entregar se soubesse que era de fato capaz de seguir sozinha. Era. Mas não queria. Desejava seguir sem contar as pedras. Para ser e fazer feliz. 

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A ENTREGA

De repente, o querer torna-se vendaval. Desses que arrancam raízes e razões. Sem muito tempo para pensar, o encontro acontece como desde o princípio deveria ser. Plena descoberta em oceano de emoções. 
Não saberia mais separar o que invade pele e alma. Limites desfeitos, deleite abrigado, mensagem decifrada. Marcada com beijos e palavras, seguro o fôlego e mergulho. Ao alcance das mãos que ainda procuram o secreto momento. 
Sem medos, sem reticências, sem meros acasos . Abençoado encontro que se revela tão próximo. Em trilha de luzes que se expandem em estrelas surgidas no ontem. A presença de um sol, de um aglomerado celeste que talvez defina o que se vai desenhando em mim. 
Palavras repetidas como mantras. Tão insistentes que se fazem permanentes, ora  iniciais em troncos despidos, ora cicatrizes no corpo ainda quente.
O tempo balança devagar como promessa. Pele sobre pele, olhos em sonhos mergulhados e o mundo buscando calma em beijos e abraços. Palmas encostadas até que as linhas se confundam. 
Desejo de fazer feliz que se confidencia em oração silenciosa. Não abrigo mais uma história. O enredo é agora meu guia e os personagens há muito trocaram de cena. 
Peço silêncio para que possa refazer o trajeto dos pensamentos. Tanto sentir me causou estranhamento. Já não sou a mesma. Parte de mim se foi, clonada, em arte transformada. Entregue enfim.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

MIGUEL


Ele chegou. Tão aguardado, em sonhos acalentado. Um anjo que foi enviado em nuvens de saudades. Saudade de quem não pôde ficar. Decerto o encheu de beijos e carinhos antes de partir de lá. Sim, ele veio de lá, do alto, ou de outro plano, daquele lugar onde se produzem amores com asas. 
Não há dúvidas: foi batizado com a felicidade. Do ventre da mãe, pôde já receber o amor. De todos, de muitos, de fadas, duendes e seres mágicos também. 
Receba sempre sorrisos e caminhos. Que o sol sempre lhe abençoe com saúde e alegria. Que a lua embale seu sono com canções e ilumine seus sonhos. Em laços de sangue ou somente amor, complete a união entre estrelas. 
Miguel chegou e nada mais será o mesmo. Nem os pais, nem a vida. Tudo transformado em arco-íris. Seja bem-vindo, menino amado. 

domingo, 18 de agosto de 2013

SE FOSSE UMA DECLARAÇÃO...


Tudo bem, é quase nada. Ou talvez seja miragem, delírio, perturbação de uma tarde sem razão. Meus pés molhados no mar, minha cabeça ameaçando neblina. 
Não me peça para enxergar. Não sei calcular sua presença em mim. Com quantos sinais se chega ao resultado? Depois de quantas palavras se toma fôlego para acreditar?
O capricho do início derrotou minha resistência. Meus olhos já recolhiam promessas antes do amanhecer. Seria mais seguro seguir ceifando ilusão com ironia. Mas de repente, meu braço cansou da luta. Só quis ser abraço e redenção. Só quis acompanhar, deixar mão alcançar mão. 
Peço outra alternativa, em vão. Outro caminho não há. Nem mesmo atalhos posso seguir. Sem pedras no bolso, só me resta percorrer essa trilha que me oferece. Se abre um pouco, de tanta terra batida, maltratada quase maldita. 
Pedaço a pedaço, conquisto um sol do seu lugar. E enquanto espero, tudo acalma, obriga pausa, simula paz. Aceito porque outra opção não me dá. Então, recomeça tudo: pés, água, neblina, nuvem, braço em abraço, mãos e beijos, silêncio da chegada. O que será? Não sei. Nem preciso mais saber. 

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O SEXTO

Não era para ser, mas foi. De maneira natural como a criação. Era dia dos animais, dos domésticos e selvagens. De Adão e Eva em sua primeira tentação. As horas correndo em direção ao apogeu. Não era dia, não era encontro marcado, mas assumido desejo de reencontro. Foi então como deveria ter sido desde o dia que se fez luz. 
Ela observava os minutos como se eles pudessem congelar sob o seu olhar. Eles só deslizavam para baixo de todas as expectativas que agora surgiam. Na pressa de uma surpresa recém anunciada, não tinha tempo para se deixar levar pela fantasia. Pequenos detalhes teriam de ser suprimidos, varridos para o mais tarde como se promessas não fossem permitidas ali. 
O universo preparado só para aquele instante. Egoísmo de enamorados, contorno de estrelas desenhado a lápis de cor. Estenderia tapete vermelho, talvez roxo, se pudesse demonstrar o quanto ali a alegria lhe aguardava. Talvez ele entendesse o que pretendia mais do que ela mesma. Talvez a calma o abraçasse com mais frequência. Dela só poderia surgir tempestade camuflada de brisa. Contida, em sorrisos quase adormecida, a intensidade ali estava. Nos olhos que buscavam esquecimento e desculpa. Nas mãos que percorriam pele e descoberta. Naqueles passos que tontos já se pareciam tanto com o caminho. 
Era o sexto. Em sentido estendido. Vidência mais do que aguardada. Selvagem união que só se cobrava desapego. Em paraíso perdido, borboletas em esboçado voo. A partir dali, só o descanso.

sábado, 10 de agosto de 2013

SEM RAÍZES


Arrancaria raiz se assim poupasse tempestade e treva. Folhas de todas as cores espalhadas pelo solo. Pisoteadas em febril decisão. Algumas verdes de esperança desperdiçada. Outras tantas tingidas com o cobre pesado das desilusões. Havia vermelho de uma paixão ali varrida e distante. Sem seiva, a multiplicação de quedas era apenas desculpa mal dada pela natureza. Tudo fenecia, perecia como promessa quebrada.
Recolher flores já não podia. Elas já pousavam em cabeças ungidas de juventude. Grinaldas ou coroas que embelezavam anjos e fadas. Alheia novidade, em vasos também presente. De colorida somente a morte que recobria raízes e terra. Bela anarquia de elementos a caminho da podridão.
O tronco firme a lhe servir de apoio às costas que pediam descanso. Era tão exaustivo seguir avante quando tudo parecia murchar em desatenção. Era tão triste descobrir vala onde se esperava girassol. Afundou os pés naquilo que lhe parecia toda sorte de lama. Em lágrimas, fez-se irrigação. 
Queria ela própria enraizar-se, perder o contato com o móvel, desistir de todas aquelas trilhas adiante. Ficaria ali se pudesse, fixa, até ser absorvida por madeira e medo. Seu sangue seguiria nos veios daquela árvore. Cortaria desejos para se alimentar do impossível. Se pudesse, assim o faria. Só que não podia. Não pertencia àquela floresta, não era aquela a sua natureza. 
Retirou pés com cuidado e respeito. Não desejava deixar pegadas ou marcas. Que se permitisse ser esquecida. Porque devia ser. E seria...

TEUS OLHOS EM MIM


Já foi o dia. Passou a noite, rasteira e silenciosa. Orvalhadas expectativas de um novo começo. Ou, talvez, de não mais precisar desfazer laços e nós. Amanhecer simplesmente com a intenção de não mais pertencer a este ou àquele caminho. Ser, de novo, mistério e intenção. Desapego e alento. Jura e sorriso. 
Quando quieta me enrosco em planos que mal tracei, percebo que não estou só. Que já me visitas. Desnudas minhas reservas, como quem já conhece o caminho de me perder. Em sonho, em pensamento, em jornada de não querer mais.  
Invisível presença. Como vento quente, que conforta para depois varrer lembrança e poeira. Mesmo de diamantes. De brilhantes risos. Em pó, retornará passo e cansaço. 
Sinto teus olhos sobre mim. Não pesam. Não violam. Estão como que em espera, aguardando o trem dos acontecimentos. Meu corpo, estação interditada. Ameaça de bomba, fechada conexão. Sem mais deslizar pelos trilhos que de mim partem. Sem socorro, olhos percorrem desvios e vazios.  
Silencio, me aquieto, para não mais ocupar espaço demais. Se me perceberem inerte, talvez, teus olhos não registrem mais dor. 
Passagem e paisagem, só de relance encaixe. Que sejam doces visões, porém sem apego. Porque se teus olhos mergulharem em águas turvas, terão mesmo de descobrir o profundo esquecimento. 
Em mim, se perdem desejos. Em mim, se desfazem sonhos e  destinos. Em mim, pousam teus olhos. 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

EM DESALINHO

Já quis ser mais. Muito mais. Envolta em suas próprias promessas e alguma ilusão de ego, ela desejou ser outra. Aquela que não soube abrigar. Que se perdeu no tempo por desconhecer quem de fato era. 

Dor, caminho sem chão, mesa sem cadeira, esperança de tolo. Ela saberia entender, dividir as horas, fazer paz e guerra sem piscar duas vezes. Ou talvez não. Já era em pedaços desperdiçada. Por sina, emprestada à incomodação.
Desejou demais. Aceitou de menos. Alcançou o que deu. E pouco cedeu. Assim, fez seus olhos o mapa do deserto. Completou palavras cruzadas de outro. Sujou louça com expectativas e lavou vidraças com lágrimas. O estranho lhe pareceu tantas vezes lar.  
Desejou chão e mar ao mesmo tempo. Foi mais oceano do que porto. Se a natureza carregava a culpa, ela se encolhia sem respostas. Não queria assim. Amarras e cortes. Doces que azedavam com o calor dos dias. Ela azedou. Perdeu pétalas e sonhos.  Ficaram todas espalhadas em solo arenoso. Porque outra primavera viria. 
Cobriu espelho e alma. A luz infiltrava-se como conforto e trégua. Vinha para dizer que já bastava. Que não precisaria mais rasgar planos e beijos. Que era mesmo preciso ir, de lá estrear nova partida. Juntar coragem e não aguardar mais. Ser o olho do furacão e esquecer a paisagem. Não olhar ferida ou destroço. Era fim.
Caminharia pela beirada do abismo, desafiando eco e vazio. Porque dela dependiam resposta e saga. Em retas, não saberia mais seguir. Tinha as costas doloridas com o peso do que vivera. Largar, desistir de transportar ilusões era o mais difícil. Perdoar seus passos, desalinhar intenções. Apagar marcas e sinais da sua presença. Fingir não se importar em partir. Mas se importava. E muito.
Já era tarde. Partiria, com novas cicatrizes, novos humores, deixando sobre a mesa, chaves e afeto. Sabendo que era o certo. Em torto entendimento, mas o certo. 

domingo, 4 de agosto de 2013

TEU


Sem posses, sem curso ou discurso, entrego o que de melhor possuo. Não há definição para o que carrego para te ofertar. Não é laço, acaso, cansaço. Não se traduz em palavras, nem pesa como ouro ou prata. É somente teu como devia ser. Sem contrato, sem valia comprovada. Um pouco de tudo e muito de cada. 
Não há orgulho no presente que te desembrulho. Não há vaidade nos papéis que se rasgam. Há somente o que pensava ser meu e já era tão teu. Acompanha música e beijos. Espaço e descanso. Será preciso usar luvas de gentileza para que não se estrague o que te chega. Delicadeza de olhar e coração. Apreciação de conhecedor, emoção de sonhador. Toda tua experiência será apenas inocência, já que é tudo tão antigo e puro. 
Pedra preciosa não é. Nem carne, nem ossos. Não precisa de olhos para ver, nem de qualquer sentido para prever. Descansa instinto e receio. Desarma defesas e reservas. Invade como onda ou talvez destino. Atravessa pele, inaugura sensações. Esquenta, mas não queima. Adormece em teu corpo e acorda em tua alma. 
Não vendo, não troco, não compartilho. Já nasci assim, proibida de desfazer do que já levava teu nome. Não são só palavras. Não é somente emoção. É o avesso do que já vivi. É o começo do que nem prometi. É caminho não percorrido. É o que nem sei nomear. 
Talvez não te agrade. Talvez seja do tamanho errado, da cor trocada. Talvez seja exagerado, inadequado, fora de hora. Mas é teu. E isso já não posso mudar. 

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

PRONTA


A sensação de dominar a cena. Em meio a um espetáculo de luzes e cores, ela sentou-se na ponta do palco. Balançou pernas deixando os calcanhares baterem desobedientes. A peça poderia acabar, os atores emudecerem, a cortina fechar.
Dali, ela percebia o mundo, a plateia que a fitava em espanto silencioso. Eram suas próprias expectativas buscando aprovação. Mas ela continuava lá, sentada em pleno abismo, aguardando a deixa. Não tardaria. Não a decepcionaria. Sua vez já estava  ali marcada para acontecer.
Reprisou mentalmente todas as cenas, argumentando com personagens fictícios ou não. Seus lábios se moviam em trêmula prece. Que fosse logo, que fosse hoje, que fosse agora. 
Enquanto os outros, atores, figurantes e inexistentes procuravam manter a trama, aumentando ritmo e volume de falas, ela ali permanecia. Como desalinho do constante, empecilho do previsto e estudado. Um ponto destoante, pregado ali no instante errado. Ameaça de corte, de loucura, de tantos nãos. Ela mantinha pés em batida, cabeça erguida. 
Dominava a plateia com aquele sorriso de desconcentrar multidões. O sucesso já lhe beijava. A trama  poderia acabar ali, os personagens abandonarem a cena ou a cortina se fechar. Ela ali permaneceria, a balançar pernas e sentidos. Entre aplausos ou vaias. Era antes de tudo, mais feliz do que o mundo, pois o amanhã lhe pertencia. 

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

QUASE EQUILÍBRIO


Dependia só dela. Já sabia disso. O equilíbrio entre o querer e o aceitar. Não muito animada com as escolhas que caberiam a ela, preferiu silenciar vontade e tempestade. 
Respiração lenta para não apressar mais os pensamentos. Repetição de mantras inventados só para apaziguar o momento. Coluna mais ou menos ereta porque os caminhos assim o permitiam. Pés afundados em areia, talvez movediça como seus sentimentos. Olhar distante como se adivinhando o horizonte. 
Ela não estava mais ali. Não de todo. Em parte, precisava estar distante e neutra. Por hora, por aquele período de necessária ausência. Para tranquilizar dragões e serenar vulcões. Refazia cenários como quem troca incêndio por paisagem. 
Tentava em vão, escapar da teia imaginária. Rasgava fio a fio, depois tecia novo labirinto. Mãos nervosas, boca seca, pele arrepiada. De onde viria o desassossego que insistia em chegar sem convite? 
Sem sentido algum, mais fera do que bela, a intuitiva versão novamente se esgueirou pelos corredores da sua mente. Os soldados da sensatez logo a avistaram e prontamente a seguraram. Por um minuto ou dois, até quando a meditação conseguisse planar pensamento e instinto. Pouco, muito pouco, nem perto do suficiente. Amarras arrebentadas com um sorriso fácil, um gargalhar mais profundo, um fungar de corpo e alma. 
E lá se foi o equilíbrio. Pra longe, se perdeu prazo e disciplina. Encostada em premonições estranhas, ela forçou inercia. De tudo, se cansava. Porque ali não estava o mais desejado, o mais batalhado, objeto e sujeito. 
Era um jogo, talvez perdido. Ela não gostava de jogar. Por talento ou não, era mais vida do que trama. Mais sentir do que orquestra. Mas precisava ficar, calar, adormecer um pouco. Deixar passar. Ela não passaria. 

terça-feira, 30 de julho de 2013

O ESTRANHO


Ela encostou a cabeça no travesseiro e começou a recordar. Sem sentido essa viagem de volta a lugar algum. Pura distração na hora prevista para descanso e paz. Na tela poluída com imagens do dia, um ponto vazio, ali no canto, chamou sua atenção. Nele havia aquele silêncio do caos, abrigo do esquecimento, o palpitar solitário de uma tempestade a se aproximar. 
Entre todas as cores que ali ela pusera com capricho e, talvez mesmo por um capricho qualquer, lá estava o centro de tudo. Discreto, camuflado por camadas de poesia e fantasia. Improvável suspeito de crime algum. Nada falava. Na verdade, era mudo companheiro. 
Assim, quase insone, ela se deu conta da distração cometida. Tanto movimento e encanto provocaram a perda do foco. As informações eram quase inexistentes. Sabia sobre o filme preferido, o carro roubado, o braço machucado. Os elementos surgindo como peças imprecisas de um quebra cabeça de mil desejos. Difícil era formar o cenário. Mais complicado ainda era conhecer os personagens. Não tinham sido sequer apresentados. Como continuar com aquele teatro sem cenário e sem personagens? 
Não havia menção alguma do estranho naquele script. Família, amigos, amores. Nem uma linha sequer. Enredo de fato só de suspense e mistério.  Os diálogos eram extensos, fluíam sem a menor tensão. Não revelavam requintes de espião, nem artimanhas de inimigo.Quem era ele, afinal?
O narrador com sua fala arrastada aproveitava os elementos que por ali encontrava. E só ela, no vazio, fitava presente e futuro. Seus sentimentos ainda velava um tanto receosa, mas de tudo um pouco já havia revelado. Por que não? Por que teria de ocultar se nela só havia verdades? 
Na sua mente, ele realmente reinava. Quase pleno, mas absoluto. Calmo, paciente, com olhos de quem vê o mais dormente. Apontava o caminho, a direção como quem nada decide e só finge acompanhar o fluxo. Lento, absorvente movimento. Mergulho sem chance de resgate.  
Contaminada como estava, era só alegria e encontro. Não conhecia senão ou oposição. Só queria estar ali, ir com ele aonde fosse, em transe febril ou em lúcidos passos. Ah, que desconhecido fosse, porque dele partilharia um mundo. Se o objetivo era a ausência de expectativas, então que lavassem as almas de preconceitos e temores. Seguiriam assim, juntos, mãos dadas, até que uma encruzilhada surgisse. Ou não. Afinal, era só estranho encanto!  













domingo, 28 de julho de 2013

SEM ESPERA


O tempo, generoso, passou com velocidade sem se importar com prováveis obstáculos. Ela agradeceu a quase falta de expectativas. Na pressa, tudo o que lhe restava era viver o momento , depois o seguinte, e assim por diante, pulando as pausas para reflexões. Sem oportunidade para avaliar joelhos ralados, hematomas ou cortes, continuava em frente. 
Em alguns momentos, as mãos geladas. Os pensamentos entorpecidos por um querer satisfeito aos goles. Então, sem filas de espera, sem bancos de aguardo e descanso, a vida se fez veloz e intensa. 
Se houve atropelo, não pôde perceber. Talvez, quando o caminho fosse refeito, encontrasse marcas e respingos de sangue. De onde estava, nem poeira avistava. Não havia possibilidade de olhar duas vezes. Visão turva. Orientação perdida. 
Sem quedas, prosseguia. Em passos desiguais, em dança aleatória. Sentia-se segura, amparada pela própria força. Para onde iria, não tinha ideia. Só seguia o fluxo como um rio em oceano derramado. 
Inundada, ultrajada, em farrapos de sensatez. Nua, sem pudores, de tudo quis um mundo. E o teve. Aceita, liberta de qualquer amarra, enfim abrigada, emergiu plena. 
O mais difícil seria se acostumar agora à falta de movimento, ao cair vazio. Deixou-se ficar, admirada com tudo o que lhe acontecera. Sem fôlego, era hora de repousar. Aceitar-se serena e muda, nos braços envolvida. 
Precisava ali ficar, quase imóvel. Sem pensar no que viria, posto que era só chama de um novo dia. Em belas fantasias, sua mente já se desembrulhava oferecida. Mas ela só fez piscar e deixar o amanhã para outro compasso. Estava tudo tão bem desenhado. Em perfeita conjunção com o que se expandia: corpo, mente, enfim.





quinta-feira, 25 de julho de 2013

ACONCHEGO


Ruas alagadas de pessoas com as mãos nos bolsos. Casacos fazendo as vezes de outras acolhidas. Rostos cruzando-se sem reconhecimento. O frio empurrando todos para casa, para o aconchego de um suposto lar. 
Há os que realmente possuem um porto, um ninho, um lugar de chegada aguardada. Há outros que desfilam impacientes para destino ignorado. Braços cruzados que deveriam não mais guardar segredos e sim paz compartilhada.
O frio pressiona de dentro pra fora, provocando abraços já há muito tempo esquecidos no fundo de um armário. Espantados bolor e timidez, entrelaçados sentimentos reproduzem calor imediato.  Em vão, ainda há resguardo de sentidos e aptidões. Depois de cruzadas as barreiras, nada se faz tão urgente quanto a proximidade. 
Mãos demoram mais para se largar. Beijos se repetem sem argumentos de despedida. Hora de hibernar individualidades. Vento soprando para longe solidão e egoísmo. Há mais para se compartilhar, multiplicar em doses suficientes para se embriagar de amor. Procura-se par, ímpar, o que puder completar o jogo, o tabuleiro das intenções e emoções. 
Animais buscam instintivamente por abrigo. Procuram amparo, alívio para fome, sede e frio. Há em toda a natureza, redenção ao fogo, ao calor que se espalha sem explicação. Normal, natural, esperado encontro.
Noites frias pedem sopa e afinidade. Vontade de superar obstáculos e aceitar o outro. Querer a companhia do amigo e o ficar do hóspede. Acreditar nas histórias contadas em volta da fogueira. Afogar frio e vazio em vinho. Correr, rir, juntar mãos e canções. Adormecer aquecidos corpo e coração. 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

UM DIA


Vinte e quatro horas. Um pouco mais, talvez. Um intervalo gigante entre o querer e o poder. A areia da ampulheta caindo lentamente, grão em chão derramado. Vidro lascado, calendário riscado. 
Um dia inteiro para se viver antes de acordar novamente e sorrir. É hoje. Mas ainda não é. Há duas noites para atravessar, louça para lavar, o resto do dia para varrer. Marcar as iniciais na porta do amanhã. Ter como meu o que ainda não desabrochou. Ainda não. 
Preciso piscar os olhos uma, duas, muitas vezes, para ver se o tempo passa mais depressa. Dançar pulando compassos, ignorar as pausas, seguir adiante no ritmo do pulsar de pensamentos. 
Um dia, uma terça. Nem rezo o terço. Dia de Marte, Senhor da guerra. Deixe-me ficar na impaciência, reinar no desassossego da entrega. Permita-me despejar águas e formar cachoeiras. Alimentar todos os rios, extrapolar margens e arranjos. Dedicar-me ao inesperado sonho, ao projeto mais fútil. Colorir unhas como quem se pinta para a batalha. Camuflada esperança de ter mais o que fazer do que no tempo pensar. 
Ah, dia , chegue logo. Alcance meus pés ainda na cama, me assombre com seus bons presságios. Vista-me de luz. Cubra-me de flores. Traga-me folha e papel, escreverei seu nome. Levantarei de vez, cheia de sorrisos e suspiros. É dia. Ai, ainda não.
A noite abraça possibilidade e saudades. Corre depressa escondendo-se na sombra da lua. Dragão espera. São Jorge não avança. Ah, o tempo não se apressa mesmo. 
Então, prometa não se esquivar em desculpas. Só mais um dia. Não desista da festa. Acolha os convidados: abraços e beijos. Mais alguns. Todos eles. 


domingo, 21 de julho de 2013

DIREÇÃO PERIGOSA

[

Não seria agora que ela se esquivaria. Talvez fosse mais sensato desviar do trafego enlouquecido de sentimentos, estacionar no meio fio das ideias. Sem rumo, não estaria. Buscaria sinalização onde seus olhos alcançassem sentido. Nem sempre encontraria vias expressas, fluxo livre, estradas seguras. Era mais fácil atropelar os fatos, conduzir amores e intenções para o outro lado, mesmo na contramão dos acontecimentos. 
No início foi um simples girar de chave, um esquentar de motor, uma decisão tomada assim de arranque. Sem mapas ou GPS, a corrida logo se antecipou ao destino programado. 
Algumas vezes, pensou em largar o volante e optar por um passeio de bicicleta. Já muito girava em sua mente, melhor simplificar em duas rodas o que não se resolvia em quatro. Era tudo movimento, porque a vida não aceitava parada em fila dupla. Talvez em casais, talvez pais e filhos, por um momento ou outro, mas sem permissão de descanso além do estipulado limite do cartão. 
Sim, corria-se o risco de esquentar demais, de perder água e sentido, de esvaziar tanque de promessas e intenções. Havia regras,muitas delas, todas ali elencadas no livreto da auto escola. 
Ela já fora informada de quase tudo. Frequentara as aulas necessárias para aprender de uma vez que era preciso se auto conduzir, definir suas rotas, mesmo as de fuga. Aceitar que algumas estradas seriam bem ruins, que talvez o tempo mudasse de repente e embaçasse vidros e sonhos. 
Não deveria ser tão complicado assim, pensou, já desacelerando um pensamento mais veloz. Investira toda a vida em si mesma, com tantos erros e acertos quanto coubessem no bagageiro. Estepe, ocasionalmente usado, trocado por mãos amigas. Sabia que havia quem não se importasse em se sujar de graxa por ela. 
O lugar do passageiro vago. A paisagem clara em amplos para-brisas. As luzes no painel piscando na sintonia desejada. Estava tudo pronto.  Ela estava pronta. Da vida, se ocuparia. Do trajeto, aproveitaria. Sob tempestades, ou sob sol escaldando capota e desejos. Ali, dali em diante, bem ou mal, era ela quem conduzia.  

sexta-feira, 19 de julho de 2013

SENHOR DAS IMAGENS


Não o conhecia, mas também não poderia dizer que o desconhecia por completo. Era assim uma espécie de personagem a entrar e a desaparecer de sua vida. Sempre carregado de suspense e uma trilha sonora particular. Ela suspeitava que sem aquela companhia musical, o seu encanto se desintegraria por completo. O homem não teria mais a força vital que lhe movia através dos cenários cotidianos. Os passos não pareceriam assim tão decididos e firmes. Com certeza, pereceria. Encolheria. Seria mais um entre tantos que por ali passaram.
Além da música, o sujeito trazia consigo uma bagagem peculiar: malas, caixas, baús, todos repletos de imagens. Algumas tão já conhecidas, outras de inacreditável beleza, poucas de aparente raridade. Eram preciosas gravuras que mergulhavam com facilidade nas mentes que se aproximavam curiosas. Fora assim com ela. Experimentara sinestesias extravagantes ao tocar em alguns daqueles cartões, fotografias gastas pelo tempo e lágrimas.  Projeções mentais que se deitavam com ela sem permissão. Cobriam seu corpo com lençóis de sonhos, de ideias tão novas quanto a vida que lhe vinha ao ventre.
Espetacular sensação de render-se aos inacabados contornos daqueles desenhos coloridos. Eram todos uma viagem sem volta, com direito à paisagem na janela de um vagão encantado. Ele por sua companhia, seu fornecedor de magias, de ousadias em luz e sombra. Seu cavalheiro de escolhas difíceis, de maneiras estranhas, de compreensão tardia. Conhecedor das verdades expostas e das mentiras tão veladas como slides queimados pelo sol. De fato, era mestre. Das imagens, o senhor. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

MENSAGEM SEM FIM


Ela procurava pelo profundo e obscuro sentido de tudo, pelas revelações mais sutis no intervalo de uma palavra e outra.  Atravessaria o oceano da indecisão se lhe fossem revelados causa e efeito.  Ainda desconhecia andamento e custo, mas aceitava a parceria incerta.  
O mistério teimava em invadir as margens da história ainda recente e frágil. Devorando razão, camuflando dúvidas e anseios. Tudo encoberto por um misto de encantamento e ferrugem. Sentia o gosto de sal, areia e algum sonho triturado sem delicadezas.
Pedaços de ilusões foram assim atirados contra a janela das intenções. Por lá, nada parecia passar. Nem sua presença parecia pesar ali. Nada se adiantava na hora. Os minutos mesclavam-se às palavras, algumas bonitas, outras mais ousadas, as últimas de merecido esquecimento. 
Ela deitava-se sobre flores ainda por desabrochar. Um certo receio de florescer antecipado, de apressado desapontamento, de um fim prematuro. Temia desgastar aquelas preciosas pedras com os dentes da sua impaciência. Lutava contra sua própria natureza para assegurar uma chance a mais para o que lhe apresentavam como enredo de mais um romance. 
Por mais que recolhesse asas e plumagens, seu instinto era voar, permanecer em delírio valsante até que outra tempestade a trouxesse à terra.Já previa os pingos a lhe desbotar a alma alegre.  
Descascava argumentos para livrar-se das interrogações que se amontoavam pelos cantos. Cada pensamento brotava carregado de alegrias renovadas. Dessas surpresas que preenchem os espaços e limpam maus presságios. Assumiria de vez o insensato querer como mapa amassado do destino. Que fosse assim, um começo sem fim previsto. Um reinado de sensações em território desconhecido. Que seja história sem mensagens, sem segredos, sem final. Abraço e beijo. Só. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

RISCOS DE SAL


Remexidos papéis e argumentos, a casa cedeu. Sob o peso inerte de um sólido desejo. Sem nem um sopro de razão. Tudo arrasado e arrastado pelas ondas da imaginação. Ela culparia hormônios ou demônios, se não fosse tão fremente a busca por sobreviventes sentidos.
Não restaram destroços. O que fora derrubado tornara-se puro pó. Poeira dispensada, soprada pela brisa. O mar acolhera o que nem o fogo destruiria. Legado de mil condições impostas, fez-se crescente o apelo da vida por mais e mais. 
Em suas mãos, coragem e verdade. Nos seus olhos, cristais de amanhãs previstos. Os pés em elevada distância do que se consideraria provável ou sensato. Teria asas se considerasse a pureza como opção. 
Possuía ainda o gosto das pimentas mais ardentes na boca e na alma, como se mais fosse preciso provar. Experimentaria todos os sabores antes que o paladar emudecesse exausto. Acrescentaria de si mesma o ardor de condimentos mais picantes. 
Neste momento de recriação, nada era arriscado demais. O risco maior seria perder a intenção, o encontro, o revirar de toda emoção. 
Identidades reveladas somente no vão de um esbarrão do acaso. Palmas unidas, linhas entrelaçadas, tecendo seu próprio mapa. Destino estapeando descrentes alinhados em disciplina de sensações. Nada mais ali permaneceria intacto, já que o sal temperara o insosso desjejum de promessas amanhecidas.
Que a base não fosse firme, ela já pressentia. Paredes finas, tênues delicadezas em asas de borboleta, erguiam-se. Combinações diferentes de cal e algum mal sustentariam o que não encontrava descanso. 
De concreto só a certeza de se querer construir mais do que destruir. De certo, só a vontade de ficar ali, em sintonia com o desconhecido. Abrigar-se em peito oferecido quando a noite chegasse. Fitar estrelas em olhos e céus. Encontrar proteção e calor, sem questionar razão ou emoção. De resto, era só passado a ser esquecido, morto e sepultado no terreno baldio do não mais querer. 


NUVENS


Vontade de ali ficar, acomodada e aquecida. Talvez até mesmo esquecida do que a realidade lhe traz. A leveza das sensações. O doce toque de asas em sua pele como se anjos a visitassem mais de uma vez. Seria fácil se entregar de vez a essa fantasia, de se fazer completa em descoberta. 
Ela espreguiça corpo e alma. Felina coincidência de sentimentos e condimentos. Sem pressa, fareja o dia à procura de novas surpresas. Deseja permanecer enrolada em panos de amor, aconchegada nos braços imaginários, embriagada, abrigada em bem querer. 
O dia pega em suas mãos e a convida para nova dança. Há muito ainda a fazer. Embala, então, presente e futuro como se tudo dela ainda escorresse. O espelho revela olhos adocicados pelos dias corridos e tão bem vividos. Sorriso de muitos dentes, todos prontos para mastigar ilusões. Lábios rubros quase em hematomas desenhados. São beijos já tatuados, impressões aos poucos reveladas.
Abre janelas com a lentidão de quem planeja algo. Sente o vento espalhar cabelos e pensamentos. O sol tinge sua tez e desperta seus olhos para o horizonte. Ondas de lembranças sacodem seu riso, seu siso, seu liso entender. 
Lá estão elas. Imagens dispersas, que aos poucos se acumulam sobre o azul insistente do céu. Leves, sem contornos, vaporosas em algodão desenhadas. Nelas, pode-se imaginar. Plena em sua etérea passagem. Repleta de prometidas chuvas a desaguar quando assim pudessem. De lá, não queria mais partir. Suspensa em condensação acarinhada. Nuvem atravessada por raios de sol. Acumulada de vapores e amores. Se a chuva vier, que seja bem-vinda. Se feliz ainda for, que seja pela vida toda. 

domingo, 14 de julho de 2013

QUEM?


Acostumada a ser interpelada sobre seus passos, ela apenas balançou a cabeça em negativas sucessivas. Sacudiu os cabelos tentando afastar qualquer insistência. Suas ideias pairavam no ar. Não havia mais respostas. Não guardava mais lembranças. Uma nuvem de esquecimento encobrira o céu de sua memória.
Havia acontecido. De uma forma ou de outra, acontecera. Em questão de minutos, em mágica sintonia. Simples despetalar em lenta queda de sentidos. Sim, ocupara tempo e espaço sem licença. Como se já programado tudo estivesse. Estalo, faísca e labaredas. Sequência de atos determinados pelo querer genuíno. Riscos imprevistos, falhas cobertas com delicadezas sem fim. 
Ela sorria sem perceber porque ardia em crescente expectativa. Enquanto a mente lhe impingia alguma razão, metade dela já estava mergulhada no enredo apresentado. 
Impulsionada pela sede que lhe dominava, acrescentou dias ao que viria. Queria mais. Queria semanas, meses, ou talvez ainda mais. O tempo lhe devia satisfação agora. 
Embora insistissem na revelação de momentos passados, ela nada dizia. Esquecera. De tudo. De todos que antes por ali passaram. Como se a chuva aquarelasse não só suas dores, mas outros amores. Já fora ela. Agora, era outra. E essa se espalhava em desalinho, surpreendendo a si mesma pela ausência de pudores. 
Não se importava mais com nomes que antes lhe causavam arrepios ou suspiros. Não se lembrava deles. Não reconhecia mais suas iniciais. Não as possuía tatuadas na pele, nos lábios, no sorriso. 
Tudo se fora, assim, de repente. Aqueles que perderam identidade em sua alma, mais nada significavam. Lições repetidas que viraram rascunho inútil. Folhas rasgadas de um livro já esquecido. Sem nomes, Sem rostos, sem gostos. 

quinta-feira, 11 de julho de 2013

ÀS CEGAS


Desejou que a noite não chegasse tão cedo e que a tarde se estendesse generosa por mais algumas horas. O tempo suficiente de produzir luz pelo caminho restante. Não haveria lanternas à disposição. Não teria respostas a lhe guiar. Era toda dúvida e pressa. Seus pés pareciam seguir em ritmo próprio sem que sua mente pudesse acompanhá-los. 
Enfim, chegou. A lugar desconhecido, sem placas ou anúncio da sua presença. Optou pela experiência inusitada. De olhos vendados pela ignorância, adentrou o silêncio. Sem tato, sem perfumes a lhe provocar instinto de fuga, desceu degraus com receio de cair ou talvez desaparecer.
Instalou-se no caos. Parte daquilo também parecia ser sua por direito. O atraso, a fuga, a deslocada realidade, tudo a mantinha ali na expectativa do próximo minuto. Do alto, veio o aviso, um eco desencontrado de reconhecimento. Ela percebeu-se liberta de qualquer desassossego. Enfim, um pouco de luz roubada da tarde que se findara. Ela voltou os olhos para que se refletissem acolhidos. E passos seguiram-se acompanhados de cuidados velados.
Próximos o bastante para serem notados. Mãos estendidas, acolhidas, ungidas com óleos imaginários. Na impossibilidade de abraços, palmas se abrigavam, linhas se completavam. Apresentação informal, táctil e benigna. Calor trocado, delicadezas provadas em sintonia. 
Deixaram os compassos tocarem espaço e tempo, sem pausas para abstrações. Fosse quem fosse, ela ali estava. Sem domínio ou trégua. Repleta de suposições que lhe acariciavam a vaidade. Assim,  surgiu o primeiro argumento silenciado boca a boca. Paciência posta à prova, pressa retida a tempo de se deliciar com a descoberta. 
Tão acostumados à escuridão, supunham-se iluminados por algumas estrelas recém-colhidas. Quietos, embriagados com palavras não ditas e pensamentos revoltos, deixaram-se ficar na esperança de uma completude que talvez ali se anunciasse. Já não era mais dia. Havia ali o preparo do céu para a noite que caia em desmaio. Cores tingindo nuvens, sustentando uma lua envaidecida, orgulhosa de abençoar encontro e entrega . Posto assim, sem lágrimas, apenas sorrisos, o dia terminava sem direção, em cego abandono, completo por si só.  



sexta-feira, 5 de julho de 2013

LUZ E SOMBRA

Aconchegada na própria sombra, esperava por alguém. Assim, agasalhada e sem pressa, aninhada na observância do momento. Olhava os passos que outros davam, contando suas pegadas em desalinho e esquecimento. Um, dois, três, os muitos se multiplicavam em cascata e graça. 
Terminava por se distrair com tanta diversidade humana. Os traços sempre em desenho interminável, cabelos em redemoinhos e olhos de todas as cores possíveis. 
Todos ali passavam, uns com urgência, outros com apenas impaciência. Dali, ela os percorria com os olhos atentos de quem já sabe esperar por mais. Não desejaria outra paisagem, nem procuraria outros personagens. Satisfeita por estar ali, clandestina e quase esquecida.
Esticou-se para não perder a elástica realidade que ali se apresentava. Nem todos pisavam no mesmo caminho, alguns até lhe piscavam. Insones transeuntes que lhe abriam espaço entre corpos para a luz entrar. Descobertos sentidos buscando assento no corredor do dia. Mãos que se davam e colhiam de tudo o mais precioso segredo. 
Quase adormecida no seu perambular em sonhos alheios, ela se deixou levar pelas horas que molhavam sua espera. Alguém já estava ali. Há muito estancara em admirada contemplação. Como guardião dos delírios daquela que se encolhia entre trovões e estrelas. Do alto, a contemplava, embriagado com sua inocência. De onde viera aquela mulher? Ou seria apenas uma aparição sem explicação?
Ela abriu os olhos para melhor enxergar o seu chegar. O sorriso iluminou o que parecia coberto pelo invisível. Aceitou a mão estendida, o abraço, o abrigo em braços que se completavam em beijos. E assim foi. Foi ser feliz. 

MIRAGEM

Ela cruzou e descruzou olhares em questão de segundos. Não era mais impaciência. Era pura exaustão. Cansada de tantos desfiles de palavras e flores estendidas. O desejo instalara-se nos olhos daqueles que ali estavam. Alguns doces, outros traiçoeiros. Os próximos, decerto, servis e pouco atentos. 
Ela recusava pedidos com nãos inaudíveis, balançar de cabeça, silêncios embaraçosos. Perdera a compaixão no terceiro olhar que lhe convidara para descobrir mais de si mesma. Seus pensamentos sombrearam-se com o peso daquelas ameaças gentis. 
A chuva batendo lenta e constante encharcava suas esperanças. Desmancharam-se por completo as ilusões como barquinhos de papel navegando por águas turbulentas. 
E ali estavam eles, quase formando fila. Em ordem decrescente de expectativas, caminhando lentamente para um desfiladeiro desconhecido. Por que continuavam ali? Por que simplesmente não davam as costas e esperavam o veneno se dissolver?
Inesperadamente, ela abriu um sorriso. Havia sol afinal, no quarto da sua essência, adormecida constelação de humores agora se espreguiçava. Felina disposição se acautelava preguiçosa sobre as teclas de marfim. Cansara-se de tudo, inclusive de si mesma. Era tarde demais para deixar-se envelhecer em tristeza aguardente. Melhor seria expandir o que nela habitava como fonte serena e certa.
Eles lá permaneciam em uma desordem calculada, rascunhos de si mesmos, redesenhados milhares de vezes. Mesclavam suas individuais vontades aos rumores de felicidade. Tontos, embriagados, cavalheiros sem damas, enfileirados devaneios. 
Um a um, estendendo mãos, corações, intenções. Abençoados ora com um sorriso, ora com um talvez. Deixavam os vãos do salão com certezas guarnecidas de sonhos. 
Era ela a deusa do nada, guardiã do que não se pode reproduzir, o espelho de todos os horizontes. Parecia muito, até demais, mas era apenas o que lhe concediam na miragem dos seus próprios corações. 

segunda-feira, 24 de junho de 2013

SEM DESCONTO


Ela agora sabia. Não poderia aceitar menos. Nem uma parcela dela seria subtraída. Não esperaria mais extensões do outono, nem se acomodaria na hibernação que lhe propunham. Havia mais ali cobrando sua presença. 
Conversariam sobre isso nas noites seguintes. Aquecidos por lembranças, acalentados por esperanças. Brindariam aos sonhos e terminariam embriagados pelo luar. Insones, desmaiariam no leito das expectativas esticadas como lençóis macios. 
Nunca mais do mesmo. Na fogueira, atirados os últimos pedidos de redução. Ardia em desespero, o que nunca foi suficiente e nunca será. Palavras mal empregadas, desejos pouco provados, sentimentos depostos sem chance. Tudo em chamas, transformado em cinzas. Quentes, depois mornas, esquecidas, sopradas ao vento ateu. 
Ela deixava-se arrastar por essa sensação de inquietude. Pronunciava palavras estranhas como quem tenta decorar um idioma desconhecido. Febril, exausta, enlutada de luas que perdidas se fizeram marcas. 
Cedera muitas vezes. Ora por simpatia, ora por nostalgia. Nem sempre fora fiel a si mesma. Desejara, mais paixão do que razão. Por fim, se aquietara, no canto, sem espanto. Sem forças para reiniciar mais uma história sem valor. 
Sorria por puro encanto. Desta vez, era tudo verdade. Era provar o que nunca fora dito. Esperar  o segredo que lhe soprara o vento. 
Nem pouco. Nem pequeno. Nada menos do que o merecido. Era enorme a conta, em parcelas mal dividida. 
Era tempo agora de desfazer o acordo. O certo era a paga. Sem culpas, sem marras. Leal como era ali o seu coração exposto: inteiro.