domingo, 24 de junho de 2012

O PIANO E AS MALAS




Enquanto escutava o jovem chinês Lang Lang tocar piano, a moça olhava pela janela. As notas soavam suaves e densas, parecendo penetrar em seus pensamentos enrodilhados de emoções. Estava realmente fora do clima das festas juninas. De caipira só mesmo o seu coração.
Olhou para a televisão para observar aquelas mãos deslizando pelo teclado reluzente. Parecia uma espécie de mágica. O pianista sorria, fechava os olhos agradecido por algo sobrenatural. Então, ela entendeu. Não precisava explicar nada mais porque já era um acorde perfeito. E ela acordou no compasso seguinte.
Os meses anteriores tinham sido exaustivos. Fora feliz em alguns momentos de desenfreada esperança, de sedenta procura pelo esquecido, de palpitações quase adolescentes. Mas já se cansara de todo aquele ritmo alucinante. E agora, exausta, empurrava as malas cheias de melodias para o canto. Havia pouco espaço, mas ela não precisava de mais. Empilhou suas expectativas com cuidado. Enviuvará do querer tão de repente. Ah, ele morreu, dizia várias vezes por dia. O desejo, o querer, a paixão, qualquer nome que tivesse, morrera. E quando o pianista tocou o último acorde, abandonando as teclas, ela fez o mesmo. Em silêncio, sem alarde, porque de escândalo já bastava a liberdade. 

domingo, 17 de junho de 2012

O ANEL

Ana sonhava acordada. Tinha lá os seus motivos para isso. Não revelava a ninguém o que seus olhos teimavam em exibir. Estava apaixonada. Sim, loucamente apaixonada. Era difícil silenciar a gritaria do seu coração, que batia freneticamente no descompasso do momento. Não tinha certeza de nada e por isso sorria sem o peso do compromisso com a verdade.
Na ponta do sonho, rolava o objeto esférico, oco, brilhante. Ela correu para apanhá-lo antes que tombasse na fatalidade da realidade. Suas mãos acolheram a jóia com carinho de amante. Reluzia e ao mesmo tempo parecia querer sumir. O contato frio do metal desestabilizou as esperanças da menina. Ah, quantos sonhos havia perdido nesse mágico segundo de entrega? Os dedos se fecharam devorando o anel e todos os pensamentos que transbordavam dali.
Por ser apaixonada, Ana não acreditava em prisão. Não havia sentido em aprisionar o soluço da vida. Abriu a mão e contemplou o ouro em sua palma. Curiosa, deixou seus olhos pairarem nas linhas metálicas em busca de detalhes sutis que ainda não descobrira. E lá estava, camuflado na camada interior, escrito em letra caprichada, cravado, grafado, esculpido em ouro. Suspirou como que aliviada e espantada. Leu como quem reza em adoração, o nome dele, a alma dela: Armando.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

QUERO VER SANGUE


Não me venha com panos quentes
Eu nem sei o que é equilíbrio
Vou logo puxando a cadeira da sensatez
Vibro de acordo com a ocasião
Que maldade espalha-se no assoalho
Eu varro tudo para um canto, o canto mais estranho
Não me venha com perdão
Eu nem atendo pedidos desse tipo
Vou logo delegando funções
Sugiro o inferno como opção
Não me venha com ameaças vãs
Eu nem tento te entender
Vou logo esperando ver o chão
Respiro o ar como expressão
Não me venha com delicadezas
Eu nem finjo ser normal
Vou logo afiando as facas e adagas
Quero sangue, ver o teu sangue
De preferência jorrando da alma

segunda-feira, 11 de junho de 2012

A VÉSPERA


Paula olhou novamente a data na agenda. Sim, ela ainda usava agenda convencional, dessas feitas de papel. Embora aproveitasse toda a tecnologia existente, gostava do contato do papel, da sensação de concretude que aquilo lhe passava. Alisou a folha com certa impaciência. Sim, vivia a véspera do Dia dos Namorados.
Um coração desenhado apressadamente estampava a página seguinte. Era um coitado de um órgão pulsante quase anêmico equilibrando-se em uma linha no papel. Estava só, pintado de vermelho vivo bombeando sangue e esperança aos olhos de Paula. Ingenuidade de adolescente ? Talvez. E por que não? Afinal, a sua idade cronológica ia  avançando sem dar satisfações à alma jovem que permanecia assim teimosa e ardente. 
Tamborilou os dedos sobre a mesa. Arrancar a página? Esquecer a data? Mandar flores para si mesma?
Tentou ignorar o coração, ou melhor, os dois corações: o que lhe batia no peito e o que lhe fitava covardemente do papel. Pegou uma caneta e ensaiou um rabisco sobre a figura rubra, mas não se atreveu a tocar suas linhas. Era como manchar sua inocência ainda preservada em papel de seda. Deixaria a marca ali, suspeita, lembrança de um dia cheio de laços, bombons, flores e beijos. Ainda gostava desse dia, com todo o seu peso comercial, mensagens sem originalidade e o empurra empurra dos vendedores.
Ah, ela tinha prazer em ver os jovens casais desfilarem sua inexperiência tão alegre, tão vibrante, distribuindo beijos e abraços. Não era inveja. Era admiração pelo intocado sentimento ali tão visível, quase palpável. Queria isso também para ela, mas no seu tempo, mas que esse tempo fosse logo.
Paula riu lembrando-se de suas amigas que zombavam do seu romantismo, da sua paixão desorientada, do seu predomínio de cores fortes. Umas, depois de experiências desastrosas, haviam resolvido se fechar, em luto desnudo, afastando qualquer possibilidade de romance. Pareciam sábias senhoras, sensatas em suas colocações prevendo tragédias sempre que alguém mencionava as palavras namorado, amor, beijos. Estariam assim, protegidas de toda ira do deus Eros, sublimando qualquer nuance de paixão. Outras amigas riam, choravam e se afundavam em desespero, mas teimavam em viver cada dia intenso de uma novela mexicana , com os seus momentos felizes e outros nem tanto. Tinham sempre o brilho inalterado nos olhos e lábios receptivos a sorrisos. Paula ria com elas, achava que eram meio doidas, mas eram mais vivas, mais interessantes e felizes.
Optou pela insensatez, então. Levou os lábios ao papel e beijou o coração desenhado. Fosse o que fosse, quem fosse também, seria sempre assim doce menina, mulher apaixonada, face voltada ao fogo e pés subindo no degrau do otimismo. E de lá, do alto de sua irritante alegria, gritou em letras de forma vermelhas - FELIZ DIA DOS NAMORADOS. E assim, deixou a agenda aberta, recebendo os beijos de Cupido que visitava seus sonhos.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O REBENTAR DAS ONDAS


Olhando o mar, Clara percebeu que sua vida era tudo aquilo também. Alguns dias, era apenas um oceano profundo e aparentemente tranquilo, por onde navegavam singelos veleiros brancos formando uma paisagem de pintura ingenua. Outros dias, as águas ganhavam fúria repentina e se projetavam com violência contra pedras, areia e tudo o que alcançasse.
E aquele era um dia desses, quando ela se sentia chicoteada por emoções molhadas, salgadas e geladas. Tudo  vinha à garganta como ondas que antes passavam pelo seu coração desfazendo-se na areia dos sentimentos.  
Por onde estariam os salva-vidas? Longe demais para resgatar sua paz. Mas ela queria mesmo a paz? As águas tranquilas de um final de tarde, dominical e santo? Cataria conchas na beira do mar cantando melodias inocentes?
A impossibilidade de um oceano raso e seguro. A constante batalha entre água e terra, o espumar raivoso do mar sobre o leito arenoso e o balanço magnífico da natureza. Tudo beleza selvagem, indomável e por isso, tão irresistível.
Então, Clara perguntou-se o quanto daquilo era real e válido. O quanto daquilo ela queria realmente para sua vida. Ela possuía uma escolha? Poderia optar por um lago plácido? Por vezes, sentiu-se tão exausta de tantas emoções, de tantos bailes noturnos com personagens fugazes e do esgotar inerente a qualquer entrega.
Suas lágrimas secavam com a maresia e mesmo assim as respostam não vinham. O que restava era sempre a dúvida. Por que continuar insistindo em alcançar o tesouro dentro do furacão? Não seria mais fácil desistir como fizeram suas amigas mais experientes? Largar mão dos sonhos, dos ideais de uma colheita feliz? Mas ela não podia. Não podia repetir o mesmo discurso pessimista como uma carola chorosa. Não, esse não devia ser o seu papel no teatro da vida. Tinha de ser algo mais, muito mais.
Debruçou-se na mureta e observou mais uma vez o rebentar das ondas. Era um espetáculo, sem dúvida. Ora perigoso, ora tão ritmado como uma valsa. Era vida e isso não se podia negar. Então, ela descobriu. Queria aquilo. Queria o sacudir das águas emocionais, o naufragar do medo e  o estranho vaguear do destino. Mesmo que tudo fosse louco, atormentado e muito doloroso às vezes. Pelo menos era mar, oceano imenso e não água parada sujeita a mosquitos. Era forte e intensa  como a explosão das ondas contra as pedras tão sensatas e imóveis. Podia tudo, desde que se mantivesse fiel a sua natureza de água, sal e areia. Tudo!


segunda-feira, 4 de junho de 2012

DOCE PIMENTA


Quando nos deparamos com aqueles lindos olhos verdes, ficamos em dúvida se eles já amadureceram. Aí, dá uma vontade enorme de colher toda aquela beleza brotando.
A menina anda depressa, quase pulando, saltitando entre uma vontade e outra. De novo, já veio outro palpite, uma interrogação espalhada por todos em volta. Ela sorri zombando da ingenuidade dos adultos, da falta de atenção que têm com certos detalhes que, para ela, parecem tão óbvios.
Ela possui o controle nada remoto, a percepção plena do que devia e não devia conhecer. Joga, aposta alto e não tem medo do resultado de mais um arriscado lance. Tem tudo ali, calculado na impossibilidade dos seus poucos anos. É toda linda, toda charme e cor.
Tem dias que é doce e outros que só de se chegar perto os olhos lacrimejam com o seu apimentado ardor. Dá vontade de morder de tão bonita e suculenta, de apertar para ver se espremendo sai toda aquela graciosidade em flor.
E chora, e reclama e bate o pé. Tudo isso faz parte do show da estrela. Ela tem lá seus dias de diva, de star internacional, primadonna de ópera infantil. Será que ela não sabe que não precisa de nada disso? Que já tem toda luz e carisma para brilhar por séculos? Todos aplaudem de pé e os mais corajosos pedem bis.
Não é fácil, não. É pimenta, das mais ardidas, das mais belas, daquelas que enfeitam potes e parecem jóias.
De tudo, é mais ainda. É a menina correndo pelos nossos olhos. É o espetacular desabrochar em pétalas e sonhos. É a nossa Gigi amada, pimentinha linda da titia!

domingo, 3 de junho de 2012

A VONTADE


Vontade de sacudir até cair
cair tua estupidez e cegueira
até que a tua indiferença se esborrache no chão
Vontade de morder até sangrar
envenenar tuas veias
até que a tua resistência se esvaia em vão
Vontade de esmurrar até afundar
causar hematomas de bom senso
até que a tua ausência deixe de doer
Vontade de quebrar tudo até virar pó
triturar ossos e desejos
até que a tua distância se desfaça
Vontade de queimar até apagar
chamuscar teus pensamentos ocultos
até que teus segredos se abram
Vontade de terminar por aqui
rasgar verbo e carne até encerrar
anular o luto e te guardar em mim.

A ESCOLHIDA

Olhava a moça de canto de olho. Cismada, entre a inveja e a vontade de chutá-la dali para longe. Como teria chegado ali e tomado posse daquele trono? Com a beleza contrastante, as palavras sensuais saindo como pérolas e lágrimas de cristal? Usando todos os seus artifícios de deusa? Inútil tentar não sentir raiva. Ela despertava fúria e surpresa, entre as montanhas de elogios que deslizavam pelas suas costas. Rosas atiradas pelo seu caminho, com os espinhos devidamente retirados e fincados nas outras mulheres que assistiam ao espetáculo romântico.
Era linda, a escolhida. Mas não se podia definir sua beleza pelos padrões e sim pelos uivos apaixonados que se faziam ouvir por todo o caminho.
Não importava que fosse só de um a escolhida, mas era do que não devia ter feito tal escolha. Afinal, ele já era o escolhido de alguém na multidão, cultivado no jardim das suas ilusões com carinho e quase obsessão. E agora, tinha de ser arrancado tal erva daninha, machucando a mão daquela que só queria regar o solo e ninar a semente da sua paixão.
O destino, o mar revolto dos acontecimentos, tudo conspirou para que outra soprasse para longe qualquer possibilidade de apego àquela que olhou e gostou.
Não dava para contestar a escolha. Não era possível retirar dos olhos do amado aquele brilho que cegava. As palavras surgiam como farpas, como agulhas que espetavam e ensurdeciam qualquer esperança. Não dava para competir com aquele sentimento, com aquela falta de senso, com tanta emoção dando voltas.
Raiz e farpa arrancadas com choro silencioso. Buracos tampados, água atirada e arado puxado. Vontade de queimar até tornar infértil o campo dos sentimentos. Para deixar de sentir o calor dos outros, para renunciar à possibilidade de avalanche, para suportar melhor o enterro dos sonhos.
E já que estava ali, decidiu prestar homenagens à escolhida. Não por dever, mas por falta de opção, por saber que um dia também poderia ser a escolhida. E  talvez escolhesse não ser.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A CULPADA

Ah, tudo culpa dela. Da sua mania de ser tão atraente, de se vestir de cores inexistentes, de pertencer ao mundo dos impossíveis.
Não tenho mais ninguém para responsabilizar a não ser ela. Sim, foi ela que me arrastou algumas vezes ao fundo para verificar se havia mesmo um fundo nisso tudo. Mergulhei com ela, por ela e doida nela. Brincamos de ciranda-cirandinha, de pega-pega, de esconde-esconde. Eu acabei é me cansando e ela ali pronta para mais uma rodada, fosse com quem fosse.
Maluca, bipolar, extravagante, mas parece gargalhar de todos os rótulos que alguém possa lhe dar. Eu me jogo nela, ela se joga dentro de mim e o mundo não fica mais fácil, mas muito mais colorido. Difícil renunciar a ela, impossível ficar indiferente a ela. Não há imunização possível, todos os poetas tentaram.
A dor sempre a acompanha mais cedo ou mais tarde. Ai, que seja tarde, muito tarde, por favor. Que ainda exista o brilho de estrelas inventadas nos olhos do escolhido por ela. Que vele por mais uma noite de loucura, de beijos intermináveis, de poesias inventadas às pressas. Que torne possível o impossível. Que rasgue o véu do razoável, que passe por cima de qualquer regra antes estipulada pelo bom senso. Que cubra tudo com relâmpagos e  pragas. Que me atire ao mar revolto, que me faça fim antes do começo, que desista de mim no primeiro encontro.
Mesmo com todos os adornos, suspiros, com toda a culpa levada a décima potência, ela ainda me faz feliz por um instante, o momento antes de ralar a alma na realidade. Ela é a paixão. Ela é a poderosa força motriz que esbarra em qualquer um e espalha o rastro de ilusão por onde passa. Chama-se paixão, mas  seu nome deveria ser culpada, de tudo.