sábado, 17 de janeiro de 2015

DESPROCURO



A água corre ao contrário, some no redemoinho desconstruído do tempo. O caminho não é de ida. Também, não oferece volta. Talvez, seja pausa e descanso. Talvez, seja mais de mim mesma. 
Meus olhos não focam, não escolhem paisagens além do horizonte. As cores multiplicam-se, em giros contínuos e cada vez mais velozes.Misturam-se, contaminando a hora e a dúvida. Na tontura do momento, tingem a vida de branco. Há paz. 
Não existe nada adiante que convença meus sentidos. Não há procura onde já brotou a curiosa atenção. Agora, arado o solo, a água espera o chamado da semente. Não colho, nem escolho. 
As mensagens são apagadas, as fotos rasgadas, as palavras esquecidas. O branco domina tela, papel, mente. 
O merecido acaso desfaz as pegadas na areia do esperar. Posso agora seguir, tropeçar, confundir os dias e deixar de contar as luas. 
Faço o trajeto inverso das minhas opções, dispo minhas intenções e não antecipo mais desejos. Estranha liberdade. Bendita liberdade.

VALEU



Não sei o que dizer para você. As palavras fogem e se escondem nas entrelinhas das promessas. Pensei em copiar imagens e ideias alheias, mas não posso. Nesta hora, preciso ser original como pecado ou criação. Então, sigo como chuva, alternando sal e açúcar, lágrimas e sorrisos. Julguei mal o seu jeito e desprezei a sua companhia várias vezes, mas você permaneceu firme, desfiando histórias e dias. 
Foi mais forte do que tudo, Senhor. Cuidou do meu caminho, mesmo não me trazendo flores. Tratou de afugentar todos os que não me mereciam. Obrigou-me a dizer "não", a fechar a porta e a não aceitar pouco por não ter mais nada. 
Alisou minha alma com lições que eu não estava nada a fim de aprender. Encheu meus dias com a sua irritante persistência, mesmo quando eu só queria expulsar sua presença e sabedoria. 
Não gostei quando gritou comigo, chamando minha atenção para coisas que eu não queria ver, para os vazios sem respostas. 
Agora sei que você não foi nem bom nem ruim. Foi justo. 
Agradeço por me tornar mais... (alguma coisa...rs). 
Adeus, 2014.

UMA NOITE QUALQUER

Quase hipnotizada, Marina encostou o nariz na janela. O contato frio despertou-lhe os sentidos já entorpecidos. O ar expelido pela respiração entrecortada embaçou a visão que antes transparecia. Afastou o rosto e tocou o vidro com as pontas dos dedos. Ouviu um sino distante e observou o craquelar do cristal. Vidro transformado em flocos macios, esvoaçantes, valsando sob um céu azul profundo.
Se Marina soubesse que a liberdade exigiria tão pouco esforço, teria se apressado no desfazer do destino. Livre, respirava o mundo que, um dia, também a fizera feliz. Lembranças, doces lembranças que faziam seu estômago doer. Ou seria apenas fome?
Era tudo o que lhe restava: a liberdade em uma noite qualquer sem luar. Ser livre para recordar um passado tão breve e divagar sobre um futuro que lhe parecia por demais distante.  Marina sacudiu a cabeça para dissipar a tontura que insistia em chegar. O balanço fez com que os negros cabelos cobrissem suas costas como um xale de espessa lã. Seus olhos adoçados em tons de mel ainda guardavam a essência de uma infância perdida.
Sacudido por uma súbita onda de tremor, o corpo diminuto encolheu-se, agarrado àquele nada que invadia a gélida madrugada. Marina esticou os braços para provocar algum movimento no ar como um maestro a reger intenções.
Por alguns segundos preciosos e fugazes, sentiu-se planar em solitário voo, ainda que desprovida de asas. Assim como em um delírio, parecia ter olhos de águia, ou talvez, a sabedoria de uma coruja. Mau agouro. Era tarde, muito tarde, ela repetiu para si mesma mais de uma vez.
– Não vamos falar disso agora.
Ela virou-se, espantada com a voz que não se apresentava como real. Os flocos de neve ainda caíam formando um manto aveludado. De repente, surgiram dorso, patas e uma bela cabeça ornada por um único chifre. Extremidade revelada como uma adaga sagrada dos muitos sonhos que Marina atrevia-se a guardar. Era dela, o unicórnio de maravilhosa crina, balançando com o vento gelado em noturna vigília.
– Ainda não vamos falar disso, menina.
Marina, seguindo impreciso instinto, fez-se amazona e no seu unicórnio encantado montou. O pouco peso não abalou nem crina, nem sina. Ela seguiu feliz, segurando-se nos pelos que lhe pareciam feitos de seda.
Depois de alguns minutos de êxtase, a música começou, invadindo a noite com o seu carrossel de compassos. Girando, girando, sem pausas, as notas subiam e desciam, acompanhando a risada infantil. Era ela, Marina, menina, que ali confundia o tempo com sorrisos.
– Não falemos mais disso, não mais.
Marina sorriu, concordando com o companheiro de viagem. Não ousou contestar aquela imagem que a distanciava cada vez mais da razão. Preferiu despir-se de qualquer desconfiança, embriagando-se da nova realidade com voracidade.
Com delicadeza, Marina controlava o ritmo do unicórnio. Parecia que qualquer movimento mais brusco faria aquele ser mágico sumir. Fechou os olhos e sentiu a neve cair sobre seu rosto, misturando-se às lágrimas.
Cansada, a menina permitiu-se viver aquela estranha passagem, dando as costas a qualquer receio. Viu-se coroada por um halo de delicadas flores entrelaçadas. Vestes muito alvas tocavam-lhe a pele, cobrindo seus últimos temores. Cristais pendiam de suas orelhas e pescoço como frias constelações brilhantes. Nunca fora tão rica, princesa munida de forças estelares.
Admirada com a beleza do momento e das sensações calmantes que lhe vinham, a garota pensou em despertar do transe. Estremeceu, abrindo os olhos com muita dificuldade. As pálpebras pesavam convidando ao adormecer. Talvez fosse o frio, a cauda do sono a lhe açoitar os pensamentos.
– Não precisamos falar sobre nada disso. Confie, apenas confie.
Os olhos de Marina vidraram, pontilhando uma mira que nunca existira. A flecha aguda da dor perfurou a pouca consciência, desfazendo-se em uma nuvem de torpor.
O unicórnio já amuado não mais falou. Silenciou a magia em galope solene. Marina, pequena, magra assombração do que pretendera ser, inclinou-se, abraçando o dorso do mágico animal. Não sentia mais frio. O contato macio do pelo em seda trançado serviu-lhe, enfim, de acalento. A coroa de flores caiu, deslizando pelos cabelos e na neve afundou. As pétalas espalhadas transformaram-se em pontos de luz. Talvez velas, chamas impossíveis no frio cortante da noite.
Diminuindo aos poucos o ritmo do seu trotar, o unicórnio concordou com o destino. Estancou, relinchando em descompasso fúnebre. O corpo da jovem tombou em lenta procissão sem anjos.
Na estática cena, a menina embriagava o solo com seu último desejo. Ainda que fosse aquela a única vez, Marina teve sua prece atendida. Encantada seria, na mais fantástica fantasia, para toda a eternidade jamais esquecida.
O unicórnio curvou-se em reverência à escolhida da noite. Não era mais uma invenção desenhada em sonhos. Já não precisava existir para aqueles olhos febris. Sua reluzente figura seguiu viagem, cobrindo de estrelas o caminho sem volta. A menina dormia no seu sono de mentira.
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