terça-feira, 26 de março de 2013

CHOCOLATE

Poderia me oferecer uma cadeira e um sorriso. Não nessa ordem e disposição, mas poderia. Eu aceitaria sentar e esperar por um segundo sorriso. Teria sentido abandonar a liberdade por alguns momentos. Pertenceria a esse encontro com alegria e quase aceitação.
Puxe, então, uma cadeira e um sorriso. Ofereça-me o mundo e desapareça com o menu. Não, não quero mais ter que escolher. Quero o óbvio, o único, o inoportuno. Recomeçar quando a sintonia falhar. Atravessar mares quando o rio secar. Tentar o impossível só para não me acomodar no provável.
Aprecio as possibilidades. Se rio é por esquecimento. Por você, divirto o tolo e entrevisto o inevitável. Cubro-me de todos os sabores, só para não mais suscitar apetites. Serei ácida se o esperar for impreciso e frio. Salgarei seus intentos se não incluírem a mim como principal jornada. Amarga me tornarei se a vingança cutucar meus dias. Ah, mais doce me derramarei sobre seus planos, quase em paz.
Grudarei feito chocolate, calda a derreter, quente e invasora. Cobertura brilhante de segredos abençoados pelo mistério. De sorrisos completarei a bandeja de sonhos a mim oferecida. Negra, branca, ao leite, aos pedaços e toda sua.


quinta-feira, 21 de março de 2013

INVISÍVEL SINTONIA

Lá vem ela inaugurando o outono. Não fosse pelas calçadas esburacadas, desfilaria sob o cair de folhas. Chapéus de sol a saúdam trocando as cores de suas copas. O verde emudece e o vento vem logo dobrar o cobre que a tudo descobre. O vermelho rompe a ordem das coisas porque tem sede de novas flores.
Por aqui, ela passa e nem olha para os lados, pois o chão a desafia. Precisa proteger as rodas e a vida do descaso. No carrinho, seu tesouro, o doce da sua missão. O filho que carregou, agora sustenta toda sua esperança. Como colheita, não há melhor sorriso.
Pode parecer estranha para olhos desacostumados com essa graça florida. Alguns duvidam que ela realmente exista, posto que queima sem ao menos ser vista. Menina bailarina que aos poucos divisa o que é real daquilo que é só pista.
Depois de algum tentar, você reconhece a diva. Aquela que se esconde por trás dos óculos escuros. O interesse cresce para melhor desfrutar desta presença oblíqua. O céu enche-se de azul, branco, verde, amarelo e vermelho. Já não há espaço sem alegria dela. Balões flutuam pelo seu sorriso enquanto as estrelas ainda não chegam.
Há de ser assim: sempre bela e amiga. Entre as conquistas, algumas lágrimas. Dos mais fortes, torna-se aliada. Das fraquezas, vira as páginas.
Mulher que junta o mar e a ira. Num só olhar,  é onda arrebentando contra a rocha. Abraça o inerte para transformar pedra em constelação de amores.


domingo, 17 de março de 2013

SEM RESPOSTAS

Estanquei. Sangue e susto, pressa e assunto. Ignorar o medo deixou de ser uma opção. Meus olhos ardem em busca do que já se tornou familiar. Parada, estática, coração aos pulos, mãos suadas e frias. Com pensamentos embaraçados, tenho os pés colados neste chão feito de grãos do real, sem poeira de ilusão.

Tampo os ouvidos para não mais escutar. Não quero a melodia que se aproxima lenta e invasora. Essas notas pertencentes a outros tempos, aos desatinos e dúbias questões são já passado. Não há lugar para compassos extenuantes, vindos de contos de fadas.

Bem sei dos perigos que me rondam. Não da violência temida por todos, mas da incoerência presente em olhares e amores. Estes sim, danificam meu sistema racional com promessas de um querer distante. Aos poucos, ganham espaço entre o sim e o não de cada escolha. O talvez me alucina com suas expectativas e planos. Por onde andarei?

Criarei raízes na descrença. Talvez assim seja. Mergulho os pés nesta lama que a tudo contamina querendo ao destino fértil retornar. Se me moldo ao presente real, perco de vez minha flexível bondade. Há juras amarradas como cipós pendentes e outras tantas dúvidas brotando sem parar.
 
Aqui ficarei. Pequena em brotação, subterrânea e inerte. Aguardarei a decisão do sol e dos céus terei a expectativa em flor. Ou talvez, de terreno profundo me venha o necessário perdão. Alimento transferido em folhas de atenção. Fundarei meu reino e meu desejo neste solo, senão gentil, ainda assim meu chão.




domingo, 10 de março de 2013

PÉS DESCALÇOS

Quando viu, já estava com os tornozelos cobertos. Havia entrado com os dois pés sem verificar a temperatura, a profundidade, os riscos. Só então, percebeu que não era profundo. Era raso. Superfície plana, um tanto pedregosa, consistente e só. De onde vinha então a sensação de areia movediça? Do arrastar contínuo de um rio subterrâneo, sem pressa, sem definição de rumo?
Ficaria ali, chutando a turva água como quem brinca de provocar o destino. Quando acenou com a mínima curva decrescente, ambição de cachoeira, o encanto virou as costas. Já não estava ali.
Seus olhos escureceram-se como se vestissem as nuvens do desapontamento. Estendeu os braços não mais para buscar aconchego ou destinação, mas para mostrar os cortes que se abriam. A quem, não sabia dizer, já que aquele olhar não mais lhe aquecia. As costas, o andar distanciado, a vagareza de um abandonar sem culpa. Tudo indicava outro caminho, trilha perigosa, em pleno deserto de opções.
Arranhando os pés na impossibilidade, ela afundou desejos incontáveis. As margens estreitavam-se em busca de uma união que não aconteceria. A profundidade não viria por mais que ela mergulhasse em cada onda de sonhos.
Era hora de firmar bandeira e vontade em território que levasse seu nome. Talvez fosse ali mesmo. Talvez fosse além das camadas de areia, limo, aflição e finas redes de segurança. Só, como amazona que assume sua identidade com as forças invisíveis. Pelo ar invasor, por toda terra pisada, água rebatizada e  fogo purificador. Pelos elementos, aceitava afinal, os pés descalços de destino.


sábado, 2 de março de 2013

FLOR DO CAMPO

Deveria ser homenageada com toda pompa e circunstância que merece uma rainha. Mas a vida lhe fez misturada, toda em cores transparentes, nessa plebe enlouquecida.
Quem dirá que ela reúne todas as formas em um só corpo? Pois ela passa, sem ser de Ipanema, com leveza e toda graça. Colorida como pintura naif, um tanto dark quando os dias se espremem, exibe tons jamais vistos.
Nos cabelos, guarda ouro, sol e às vezes trigo a balançar com o vento. Os olhos competem com o céu, azulejam poesias de encantamento e magia. A pele alva, manchada de beijos, pequenos presentes, ofertas dos anjos. Enferruja de beleza, trocando primavera e outono, como se fossem estações de brinquedo em risos multiplicados.
Estaria só assim, qualificada para reinos mais magníficos. No entanto, se faz bela por se saber tão necessária. Com lanças de aço e um coração em estilhaços, é guerreira em todos os espaços. Quer se cobrir com o breu da noite, mas só consegue se derramar toda em estrelas.
De pequena, não tem nada. Seus espaços pedem aplausos. Sua alma guarda segredos que aos poucos são revelados. Tem olhos que permitem ver todo o amor que pode haver nesse mundo e em outros mais. Inspira pieguices e outras "breguices", pois é tão fácil errar na dose quando se fala dessa moça.
Compartilhar do seu viver é muito mais do que só querer. É ter festa todo dia, nem que seja por luto ou cura.
Carrega ainda esse manto de dúvidas e, na cabeça, a coroa toda espinhada de culpa. Do quê, perguntaria você. E eu diria sem saber ao certo - acho que é de não pertencer a este mundo, de ser mais do que o possível plano apresentado, de se chocar como esplendorosa onda contra o rochedo da realidade. Deve ser culpada, sim. Por nos fazer sentido e sentimento, amar essa mulher que só espalha o que melhor pode. Flor perfumada do viver.