quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A CAIXA

Se ainda fosse uma surpresa, seria a mais bela. Arabescos aveludados sobre o ouro folheado da tampa. Aberta, revelava novo encantamento. Pequenos casulos, colmeia perfeita de doces confeitos. O aroma de chocolate subindo pelo ambiente e as pequenas jóias sendo observadas e cobiçadas. Mãos, entre ansiosas e delicadas, conferiam a variedade ofertada.
Pequenos vazios começaram a surgir destruindo a unidade perfeita do momento. O doce paladar ganhando a disputa facilmente. Sem tempo para imprimir digitais, cada bombom era devorado com vagar de conhecedor. Como a vida deveria ser degustada, com lerdeza de casal se abraçando em câmera lenta.
Então, entre a mordida e a lembrança adocicada, surgiu a imagem. Do resto que se apresentava ali, o vazio tomaria conta. Sobrevivente, a caixa poderia ser esquecida em um canto qualquer. Sobre uma mesa cheia de pratos sujos. Escondida entre os livros ainda não lidos. Onde estivesse, carregaria ainda aquela imagem de romance. Mesmo que em nenhum instante beijos tivessem sido propostos.
Imaginou-se então, destino mais nobre para a embalagem vazia. Fosse como fosse, aquela relíquia deveria ser preservada. Não apenas reciclada, porque perderia todo o encanto. Seria mais justo manter seu histórico de sonhos e abrir novos enredos.
Ali, algo seria guardado. Embalado entre promessas feitas de papel de seda. Velado, protegido, camuflado. Volumes pequenos, estreitas revelações. Cartas com antigas mensagens aguardadas. Talvez reunidas de cinco em cinco e envoltas por laço carmim. E o cheiro de chocolate misturando-se a gotas perdidas de champagne. Porque assim era a festa que ali se anunciava. As palavras manchadas de passado e a tinta mesclando-se ao que ainda viria. Ali, na caixa, deitaria linha por linha. Dali, sairia mais inspiração do que razão. Feito Pandora, que nem sempre seria o agora.  
 


quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

MEU CORAÇÃO TEM FOME

Afundo o rosto no travesseiro como se mergulhasse em outra dimensão. Teria mais chance de nada sentir se me transformasse em personagem, em lenda, em qualquer coisa que não me tornasse tão humana.
Cacos dos meus pensamentos juntam-se no mosaico interminável da saudade. Tenho pressa de quem deseja e paciência de quem sabe amar. Remonto quebra-cabeças só para parecer indiferente ao tempo que escolhe passar devagar. Leva, com ele, acorrentado querer.
Sempre e nunca misturam-se na bacia das impossibilidades. Tenho as mãos feridas de tanto golpear a porta dos acontecimentos. Reclamo, aflita, por mais do que nem devia provar. Não há proibições quando diviso fato e sonho. Nem tão pouco a aguardada permissão para que o delírio se descongele em poças de prazer.
Há fome de todos os tipos sobre a mesa. Apetites gigantes que acompanham olhar, cobiça e alegria. Migalhas nem são desprezadas. Acumulam-se feito expectativas de noites mal dormidas. Pratos lascados, copos manchados de batom, talheres jogados como armas inúteis após o combate. A toalha rendada de beijos cobre todo o medo, toda a ausência, toda a possível culpa. Cai sobre mim como céu estrelado de promessas.
E o coração bate, ansioso, temeroso de que não chegue nunca o momento. Transmite sinais estranhos a qualquer ser, em qualquer língua desconhecida. Frágil e guerreiro. Voraz e estrangeiro. Pelo sentimento esticado ao sol, bate, palpita, dispara em direção desconhecida. Tem pressa. Tem alma. Tem fome. De você.
 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

DIAS SEM NÓS

É, o mundo não acabou. O céu não desabou sobre nossas cabeças tumultuadas de sonhos. Tenho, portanto, alguma chance a mais de ver meus planos traçados e realizados. Guardo minutos em gavetas imaginárias só para poupá-los do desgaste do cotidiano. Embrulhados mimos de um desejo que despertou comigo.
As horas subindo e descendo as escadas rolantes da imaginação. Portas batendo fora do ritmo dos acontecimentos. Onde estamos nós que não nos encaixamos no aqui programado? Reviramos a agenda das oportunidades e rasgamos as férias, os feriados, os fins de semana que não nos esperaram. As noites perdidas, sem sono, sem dono, sem como chegar. Tropeçamos em degraus que nunca existiram. Obstáculos invisíveis que nos desafiam com a finitude de tudo.
Nada será tão infinito enquanto dure. Não obedeceremos às regras do poeta. Teremos mais razões a cada momento para deixar a vida tomar seu rumo. Antes que tudo se torne propriedade do acaso.
Daria quase tudo para não ceder à intenção do tempo. Desataria nós se não sentisse pena de desfazer o laço. Abriria os presentes antes da hora só para não ter mais que adivinhar de onde vêm as graças. De todos os papéis, teria um preferido e o desamassaria com carinho de quem quer poupar o momento.
Mas tudo é muito pouco, tudo é tão ínfimo quando o calendário comanda. Traços vermelhos cobrindo tudo o que já se foi. O contraste do futuro em números definidos, maiores do que todas as nossas expectativas. A espera revela-se dolorosa e ao mesmo tempo terna. Misto de esperança e inquietação. Menina esperando Papai Noel chegar e deixar sob a árvore dias e sorrisos. Ter o aperto de um nó desmanchado na certeza de mais de nós. Muitos nós. Nossos.
 



quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

SE A CHUVA VIER....



Nuvens ameaçavam fazer a noite molhada e surda. Promessas de um recolhimento já não tão necessário assim. Lençóis revirados anunciando uma desordem contínua. Os pensamentos reunidos em um canto esperando o melhor momento de dar um basta na torrente de emoções. Por onde ela deveria começar?
Retirou o pó da mesa como quem espera que brotem fadas e duendes. Esfregou as paredes para ver se o esquecimento alvejava a tinta gasta. Limpou, lustrou, encerou os móveis e também os imóveis espalhados pela sua vida. Tinha pouca pressa na limpeza. Havia muita ausência espalhada pelos cantos. Se espirrasse agora, expulsaria a falta de notícias? Ou será que era o acúmulo de novidades que a deixava assim tão perdida entre os pensamentos?
A música também não ajudava. Estava convicta de que suas emoções reagiam às melodias ouvidas. Coisa de gente doida, diria sua tia. Mas era assim que funcionava: uma canção romântica puxava a princesa à espera do cavalheiro que viraria sapo de tempos em tempos. Um rock pesado talvez a mantivesse longe daquela bruma entorpecente lá adiante. Preferiu o silêncio e tudo o que  pôde ouvir  foi seu próprio suspiro. Não era aflição nem agonia. Era apenas o vazio ganhando forma e som.
A chuva começou a cair, devagar como a querer silenciar e flagrar um amante. Depois, perdendo a paciência com as delicadezas do porvir, adentrou a noite chicoteando os telhados e lavando o solo pisado do dia.



domingo, 16 de dezembro de 2012

DIGA SIM PARA O MEU NÃO

Ouça. Guarde minhas mensagens somente para você. Veladas, aguardadas confissões. As palavras possuem seu ritmo próprio. Não tente apressá-las. Nem sempre serão ditas,mas elas estarão aqui para você.
Após o o temporal, deixe que as gotas do desejo deslizem pelas frestas do tempo. Perceba a umidade de um beijo instalado no vão da espera. Com cuidado, abra as portas para os próximos dias só nossos.  Que os seus abraços se instalem na minha vida como hóspedes que vão ficando sem hora de partir.
Assuma meu olhar como espelho. Tenha como bússola meu riso. Perca o rumo, mas não  a mim.  Dance, me alcance no ritmo que puder. Que os seus passos deixem pegadas na imaginação.  Se quiser, denuncie os invasores do sonho. Comova os espectadores que nos aplaudem. Torture a pressa, essa inimiga sempre à espreita. Negocie com as alternativas que nos afastam. Torne o momento único entre todos os já vividos.
Negue o choro. Corte as cordas que me prendem. Sussurre o meu nome no diminutivo para que o mais aumente. Ensurdeça os medos com um só olhar. Que ele dure a eternidade que nos pertence. E que nada mais seja dito.
Oriente as pausas na direção certa. Escureça o dia para que a noite possa se desnudar sem pudores.
Permita que eu ria muito antes de chorar. Que eu tenha sede, fome, tontura, agonia diante dos seus lábios. Que eu sobreviva a cada perda de fôlego. Me dê a paz, a luz e a  intenção de ficar. Revele certeza onde perco a fé. Afirme amor onde reina minha dúvida.


sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

JURO QUE TERIA

 
Eu teria sonhado com você. Rasgaria os meus medos e atiraria todos ao vento. Viveria mais uma fantasia se a realidade não bastasse para nós dois. Seria sereia, estrela, a constelação inteira se preciso fosse para mergulhar na sua vida. Eu teria cortado galhos e arrancado raízes só pra seguir viagem ao seu lado.
Eu casaria com você.  Então, juraria fidelidade eterna. Prometeria felicidade de graça, alegria matutina e travesseiros de nuvens. Suspiraria só para parecer mais romântica. Vestiria as roupas mais leves e lindas. Acordaria com um sorriso para anunciar o seu dia mais feliz.
Eu teria me desvinculado de tudo que não fosse nosso, só para não perder nenhum momento que tivesse seu nome. Adoraria os mesmos deuses. Adormeceria na sua calma e lutaria na sua ira. Eu seria sua se o limite fosse seu corpo.
Eu entregaria todas as armas. Deixaria cair todas as facas, espadas e adagas. Seria só prazer por ter você mais perto do que nunca.
Eu teria feito isso e muito mais. Eu seria louca, perdida e talvez feliz. Se fosse outra pessoa. Se não fosse eu. Teria sido um sonho. O seu sonho.


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

CAMINHO DESFEITO

 
Os dois caminhavam lado a lado, mas sem se olharem. Tinham os olhos em um ponto qualquer mais a frente. Ora se davam as mãos, ora se repeliam momentaneamente. Não havia palavra que cortasse o silêncio, nem razão para permanecer calados.
Era a dor do desconhecido. O medo de navegar por aquele oceano tão profundo. Então, só enxergavam o abismo se formando entre eles. O código da salvação estava em suas mãos, mas teriam de decifrá-lo juntos. Estariam dispostos a isso? A lançar as garantias pelo vão,  desviar das metas, confiar somente no caminho?
Não contavam as estrelas. Nem mesmo pareciam percebê-las. Talvez fosse mesmo preciso ignorá-las já que adiante o desfiladeiro anunciaria o fim. Quem desenhou esse abismo? Quem espalhou as tintas sobre a mesa do destino?
Escolha feita. Trama desfeita. Que tenham a vida que mereçam. Que o mundo se revele mais terno. Pois esses fios partidos não se refazem nem por encanto. Desamassem os papéis, repassem os diálogos, mas nada terá o mesmo espanto.
Há luz, mas não a mesma direção. Há flores, mas não o mesmo caminho. Há dois. Sós.

 

EU QUERO SOMENTE

Eu quero assim mesmo de repente. Que seja impreciso e mesmo contente. Nem mais urgente do que todo o meu desejo. E acrescente o que ainda não se sente.
Eu quero muito e nem um pouco menos. Que seja excesso sem providência. Nem mais prudente do que preciso. E revele o mundo que desconheço.
Eu quero sempre e de novo. Que seja belo e persistente. Nem mais insistente do que meus sinais. E adormeça em meus sonhos.
Eu quero assim doce e completo. Que seja ardente e mesmo indecente. Nem mais presente do que futuro seja. E aumente o que ainda não se mede.
Eu quero hoje e não somente. Que seja quente e mesmo sem fim. Nem mais poente do que crescente. E refaça tudo o que melhor se sente.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

ALA PROIBIDA

 
Você será bem-vindo. Talvez goste do jardim no caminho da chegada. Olhe as flores e nem desconfie dos espinhos. Perceba o aroma de contentamento pela sua visita. Enxergue as pegadas quase apagadas pela trilha da coragem. Neste ponto, estará disposto a seguir em frente. São mais sorrisos do que lágrimas. É mais doce do que amargo. Olhos brilham, promessas são feitas, encontros celebrados.
Passando esse portal mais adiante, a história é outra. Eu pensaria duas vezes. Mentira, eu nunca pensaria mais de uma vez. Já teria entrado e estaria dançando no salão principal. Mas esta sou eu, danço não só conforme a música, mas até sem ela. Não posso exigir que você tenha a mesma loucura embutida em suas expectativas.
Se levantar os olhos, verá que da janela alguém lhe acena. O futuro talvez. Um vulto de felicidade, quem sabe. Uma ilusão perdida, não sei. As expectativas são altas como aquela torre. Não há Rapunzel ali, não há nem mesmo cabelo suficiente para uma trança. Desista, se precisar de ajuda para subir. Cada um constrói sua escada como pode. Só não atire pedras nas vidraças. Elas quebram e me cortam.
Se passou pelo portal, se alcançou a porta que divisa o seu mundo do meu, então já sabe o que virá. Que rirá do ridículo de algumas situações. Que se emocionará com muitas imagens e sentidos descobertos. Terá orgulho de tudo o que despertar em mim, de prazer a dor. Como se eu fosse quase intocável.
Então, verá aquela porta à esquerda, batendo junto ao coração. Correntes enferrujadas protegendo algo ou alguém. O que está fora ou o que está dentro? O desgaste da madeira indica a passagem do tempo por ali. Vê essas marcas? Não são decorações. Nem condecorações. São mutações. As minhas, todas minhas.
A curiosidade pode ser maior. A sensibilidade lhe leva a perguntar quais problemas há ali. Se pode ajudar, se pode ficar mais um pouco. Encosta o ouvido na porta e só escuta um eco ao longe. Nada de crianças brincando, fadas gargalhando, ciganas dançando. Talvez um crepitar de fogo. No geral, o que há ali é silencioso e pesa feito chumbo em noite de tempestade.
Pedirá licença para entrar ali. Ouvirá alguns nãos, algumas advertências. Acusará frieza, delatará insensibilidade de iceberg. Mais por impaciência do que por orgulho ferido, eu abrirei a porta. Vê? Não há uma geleira aqui. Antes fosse, não é mesmo?
Ao olhar seus pés, perceberá algo lamacento se aproximar. Lava ou areia movediça? Que tal os dois juntos? Tudo é quente, pesado e afunda. Nessa altura, se perguntará o que está fazendo ali. Natural que assim seja. Mas foi você quem quis entrar, lembra? Com a emoção evaporando, eu direi que não preciso de ajuda ali. Que não pedi ajuda. Que não exigi nada. Só não me peça exclusividade emocional com a alegria.
Posso fechar a porta? Nem descemos os degraus, eu sei. Que necessidade há nisso? Me diz como não ter vontade agora de fugir. Conta os traços na parede. Olha quantos dias, semanas, meses e anos se passaram. Não sobrevivi bem até hoje? Não enchi a casa de flores e os olhos de graças? Voltemos a minha natural vocação para a alegria. Falemos sobre o meu talento em fazer você feliz. E nunca mais voltemos para cá. Ala interditada.
 
 


sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

PASSARÁ



Não sabia qual era a dor maior: do ventre rasgado em tiras de promessas ou da ilusão transformada em pó. Tudo misturado, tudo salpicado com o sal das lágrimas. Não era seu aquele sangue. Não eram mais as ondas do sonho por onde tantos dias havia navegado. Apenas reflexos de um pesadelo que teimava em se estender sobre a cama, sobre o seu corpo, sobre os lençóis das emoções.
De tanto sonhar, gerou mais minutos. De tanto querer, cultivou campos inteiros de esperança. Arrastou correntes demais que araram solo sem consolo. Semeou medos e anseios insanos.
A verdade arremessou seus sentimentos contra paredes de concreto puro. Arranhados, pele e ossos sucumbiram à realidade apresentada. Queria sumir. Queria mesmo morrer. Mas não morria.
Decidiu queimar seus planos mais queridos, aqueles elaborados em rendas de açúcar. Aconchegou-se no calor produzido de suas cinzas. Sentiu o gosto de água e fênix em seus lábios.
Cega, surda e quase muda, percorreu os corredores do desespero, arrastada pelos sentidos mais profundos. Não era a sua vontade. Não era a sua razão. Mas era a Vida e dela não se corre, não se nega, não se tem licença. Não se baixa a cabeça perante os desígnios das batidas do coração.
A música fez-se ouvir, como hino vagaroso que aos poucos dominava a histeria do momento. Depois, notas tornaram-se orações sussurradas. Mãos foram estendidas, abraços dados, choro compartilhado. Diante da herança recebida, da luz concebida em segredo, ela não pôde mais se conter. Arremessou-se como estrela ao céu do presente que se desembrulhava sem garantias. Fechou os olhos e experimentou o eco dos seus próprios saberes. Então uma voz ao longe disse: Não prometo a felicidade instantânea. Nem a ignorância do sofrimento. Prometo apenas, amiga, que a dor vai passar.

DOSE FATAL

Congestiono o entardecer com meus pensamentos. Há neles todo tipo de devaneios tortuosos. Como se, de repente, eu visse tudo pela primeira vez.
Emudeço diante do altar erguido à minha semelhança e dor. Em todas as oferendas, revela-se a sua inexplicável ausência.
Questiono os seus temores. Expostas suas razões em bandeja de prata, nenhuma delas me satisfaz. De onde surgiu a ideia de desgastar meu tempo e lapidar minhas virtudes? Sou tão crua, bruta e nua como antes.
Reparo nos olhares trocados. Pétalas de esquecimento esvoaçam pelo caminho do arrependimento. Sulcos precipitam-se em depressões indefinidas. Onde está sua razão agora?
Golpeio sua sensatez. Deveria ter me prestado juramentos. Sim, permitiria uma mentira ou duas. Opaca meia lua da sinceridade clareia o que nunca quis ser revelado.
Pressinto. Hesito. Colho provas antes da verdade exposta. Abro as mãos, soberana e doce. Sossego seus receios com beijos. Ou tento.
Mato. Dose fatal de verdade, muito bem digerida.
 


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O TÉDIO

É, não tem jeito. Um dia, você vai olhar em volta e suspirar. De tédio. Sentirá falta da adrenalina do duelo, do inconstante jorrar de sensações. Então, toda essa sua calma determinação ruirá. Seu projeto de ser normal cairá por terra. E eu serei a água invasora a conduzir seus sentimentos.
Será, de fato, muito confuso. Em tudo, buscará apoio e se permitirá ter medo. Eu ainda estarei ali, deslizando entre seus lábios, ignorando  qualquer obstáculo. Porque em mim, nada se tornou rotina, nada fincou bandeira, nada se apaziguou.
Esse dia chegará.Talvez com sol, talvez com chuva. Será como um furacão manso arrancando raízes sem destruir suas árvores. Que tombem passivas e renasçam em outros campos. Daqui por diante, não temerei mais nada. Nem mesmo o sol escaldante da sua presença.
Resta-me a esperança por tanto conhecer seus sonhos. Toda essa ilusória segurança não encontrará abrigo para sempre em sua vida. Um dia, abrirá a janela e jogará fora todas as possibilidades de um futuro medíocre. Então, eu serei o ar a receber suas promessas, seu livre abandono sem garantia alguma.
Esse dia há de chegar. Imperioso acontecimento que lhe devolverá a vida. Libertarei seus sonhos e alimentarei seus devaneios. Na areia do tempo, traçaremos nossos planos que serão logo desfeitos.
Sim, talvez me odeie por isso. Talvez sofra por não mais mergulhar no morno cotidiano. Mas duelaremos orgulhosos, sem temer o amor ou o ódio. Estaremos salvos do odioso império do tédio. Brindaremos a sorte de sermos assim: mutáveis e felizes.


NA ESTAÇÃO

Esperou o trem com a certeza de que deveria perdê-lo novamente. Já conhecia aqueles vagões e suas cargas. Os passageiros não eram mais estranhos. Eram personagens ensaiados, exaustos e ansiosos por mais uma encenação.
O apito fez-se ouvir. Por ora, distante, aproximando-se em desafio. O ruído crescente das engrenagens em movimento. A vida correndo sobre os trilhos do destino.
Ela olhou as horas no relógio. Era tarde demais para qualquer arrependimento. Seus olhos julgavam o momento inadequado. Piscou buscando o silêncio no vão escuro dos acontecimentos.
O trem vagarou-se. Estancou hesitante e quase silencioso. Passageiros desceram, apressados, tropeçando nos próprios pensamentos. Cegos ou insignificantes em suas procuras. Cumprimentos multiplicando-se na fumaça da manhã estendida.
A moça sentiu um indecente desejo de ali ficar. Queria estar nua, desprovida de qualquer sentido social ou moral. Queria ter somente o amor como vestimenta, manto sagrado que perdoaria tudo.
Os vagões foram assim esvaziados. A impaciência de toda uma viagem esgotava-se ali inerte em uma estação. Era outono e ainda chovia. Desejava flores ou pelo menos, poder dançar na chuva fresca.
A inconveniência do trato social e os olhares intolerantes a fizeram barrar seus impulsos. Então, ela o viu mais adiante. Perdido em pensamentos difusos. Tocaram-se com apenas um olhar. Prometeram-se toda a sorte de futuros. Estavam ali, onde sempre souberam que seria o ponto de chegada.


ENTRE AS PALAVRAS

Esticou os braços empurrando todos os livros e papéis para longe. O dia não parecia nada propício para o estudo. Olhou para a janela e sentiu inveja do lado de lá.
Tinha tanto por dentro que parecia não ter fim. As palavras virando poemas, pensamentos conspirando com sentimentos, ameaças de abandono tomando corpo. Tudo porque o silêncio a levava a pensar... e pensar nunca a tornou mais feliz.
Saudades dele. Saudades de repente. Das palavras, do papel que podia desempenhar só com ele. Da alegria que brotava do momento seguinte da sua aparição.