quinta-feira, 30 de maio de 2013

A FORÇA E A PRESSA

Atire logo a verdade na minha cara e siga em paz. Ou me tire a paz e siga comigo assim mesmo. Desconheço a ordem dos acontecimentos ou a origem da indecisão. Não me importo com a exatidão dos fatos ou a precisão do bater do coração. 
Desligue logo os aparelhos que mantêm vivos esses temores pulsantes. É só tirar da tomada. Puxar de uma só vez, dúvida e hesitação. Coragem, há de conseguir. Sem dó, sem arrependimento. Um leve choque, talvez, mas isso também passa.
Abra as janelas e espante o mofo das ideias fixas. No meu reino, elas não valem nada mesmo. Despache as malas mais pesadas e as outras deixe que eu mesma abro. Sim, eu te ajudo a desfazê-las, a pendurar casacos e intenções. 
Viu? Eu faço mais e depressa. Porque a pressa é sempre minha anfitriã. Ela não abre as portas, pois nem as têm. Para ela, só mesmo o momento que passou foi rápido o suficiente. O resto nos tortura com o tédio do vagar. 
Sei que devia esperar pacientemente pela sua decisão. Um sim, um não, mas há sempre esse talvez balançando no vão das horas. Impossível estancar o fluxo dos pensamentos. Eles correm, voam, atropelam minha determinação de descansar armas e amores. Quando vejo, o punhal já estava cravado na rosa que antes branca, sangra vermelha e sedenta. 
Assim sou. Indeterminada combinação de elementos. Alguma surpresa, pouca certeza. Ainda uma força que arrasta, arranha, avança. Condenada pelo tempo que se recusa a passar e me levar para a festa.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

VINDO DO MAR

A areia massageava seus pés. Grãos multiplicados por milhões a lhe ceder solo e conforto. Como estrelas submersas na realidade. Porções de esperanças iluminando caminhos desconhecidos.
O vento desmanchava cabelos e sonhos. Antes suave brisa, agora chicoteava verdades. Estalava implacável a vontade alheia a ela. Distante dela. Ausente e sem voz. 
Promessas enferrujavam lentamente, molhadas, salgadas, quase esquecidas. Ondas balançavam certezas, vazando a impossibilidade do momento. Espuma a limpar suas lágrimas postas e repostas, no vai e vem de uma canção oculta. 
Oferendas surgiam, devolvidas à praia, desprezadas pelos deuses. Suas intenções, sua esperança, o querer fazer bem aquele que mal reconhecia. Quebrados sentimentos, estraçalhados contra as rochas. Mãos enrugadas pelo molhar constante em busca da benção dos oceanos. 
Ela olhou novamente para o horizonte turvo. O encontro do céu com o mar. O encontro que tanto desejava. Inteiros que se encostavam, sem se misturar, só permaneciam unidos. Selados, prometidos e assim cumpridos. Azuis, cinzas e verdes mesclados em total harmonia. 
Onde estava ele? Embarcações reunidas em alto mar. Velas mais além, balançando cores no fundo azul profundo. E ele sem volta. Nem hoje, nem no próximo suspiro. Que a presença concreta fosse, ela teria talvez medo. Sendo ausência, perecia nela como entardecer. 
Esperaria por mais dois dias ou três. Tomaria fôlego e abriria espaço para mais uma jornada. Quando a maresia a deixasse tonta, colheria conchas e perdoaria. A si mesma, talvez, por desejar tanto poder ficar.

domingo, 26 de maio de 2013

BRAÇOS CRUZADOS

Teria algum tempo antes de escolher. Pouco tempo, na verdade. Conversa de minutos, palavras estendidas como um tapete surrado pelas chuvas. Melhor calar. Mas quando o silêncio vem, pesa, condensa, traz consigo a instabilidade das possibilidades. Nada é mais mutável do que uma pausa, uma brecha rasgada no turbilhão de pensamentos. 
Rabiscou estrelas e setas. Certa de que nada mais lhe pertencia naquele momento. As imagens surgiam e mergulhavam lentamente em mornas perspectivas. Distâncias trilhadas só pelo querer. Poças brotando na imensidão do segundo seguinte.
Imaginou encontros. Criou romances. Rascunhou diálogos longos em três dimensões. Rasgou tudo e recomeçou a tentar. Não havia ainda encontrado a chave. Como abrir a porta e sair dali? O silêncio, cárcere de sonhos. 
Braços fortes. Braços que deviam cercar e proteger. No entanto, só prendiam. Ao nada, conduziam. Ruído de brutalidade. Afinal, se revelava. O poder, sempre o poder, a conduzir antes o desejo. O que vem depois contamina-se com a ferrugem dos grilhões.  
Tudo perdido, arrastado pelas águas da precipitação. Lama corrente maculando corredores e sonhos. Cansada de tanto nadar, mergulhou. E nada, enxergou. O lodo pesado envolveu seu cansaço. Sofreu escuridão para poder enfim ser livre. Ilusões não sobrevivem. Missões terminam. Sensações dominam. Naqueles braços, nunca mais. 

quinta-feira, 23 de maio de 2013

O CICLO

Esperava que tudo se resolvesse por si só como mágica. Que o desfecho fosse orquestrado pelo destino, que caísse suave como neve sobre suas cabeças. Ao invés disso, surgiram tornados e avalanches acumulando destroços em dias tão azuis. Destruição não escolhe dias nublados para acontecer. Ela vem e ataca nos flancos do inesperado momento.
Dominadora sensação de por tudo a perder, de errar a aposta, de entornar a caldeira toda. Decerto as mãos tremiam pelo peso da responsabilidade. Tudo em seu nome, desejo e risco. 
Pressa de alterar a rota. Mudança de planos de última hora. Que fosse então a última vez. Que acontecesse no espaço de tempo que pretendia alcançar. Dúbio turbilhão de intuição e caos. Razão enclausurada no vão dos senãos. 
Na véspera, surgira a alegria súbita. Uma atenção maior às estrelas que lhe traziam notícias. Dormir estava fora de questão. Necessitava estar alerta para libertar o que lhe vinha ao peito, arranhando certezas e palpitando esperanças. Queria tudo novo com todas as possibilidades borbulhantes de um recomeço. 
Trêmula, ofegante, sedenta. Passos descompassados, perdidos, em desalinho com o querer. Uma rota de fuga era tudo o que queria. Só isso. Fugir dali, dos seus próprios sonhos que lhe subiam pelas veias e alcançavam oceanos mais profundos. 
Era hora. Toda. Inteira, rodopiando sem nexo, derrapando expectativas. Faíscas de um despertar tardio, lento e recomeçado. Anúncio do novo. Corte inaugurando vida.

sábado, 18 de maio de 2013

TINGIDA DE FOGO

Seria preciso muito mais do que um porto para segurá-la ali. Não acreditava em amarra alguma. Âncoras não detinham o destino. Cais não era o berço de suas expectativas. 
Havia muito mais do que as ondas batendo com violência na encosta. Sobre as rochas, sangravam areia e sal. Partículas diminutas de tudo o que trazia no peito e na alma. 
Não estabelecera descanso entre as marés e luas que se desfaziam. Rasgara as vestes. Ateara fogo nas promessas bordadas em papel e vento. Arrancara as flores de seus cabelos, uma a uma. Desta vez, sem temer, ainda com lágrimas brilhando nos olhos, alcançou pedra e punhal.
De longe, surgia como temporal, tormenta violenta a sacudir mares e lares. Se preciso fosse, quebraria. Se a impedissem, cortaria. Se ela mesma temesse, mutilaria dor e medo. Não permitiria erros, nem deles, nem seus. 
Mãos ardendo, fechadas, unhas machucando carne e sonhos. Gritavam seu nome, ela se fez surda. A coragem dominava sua figura em chamas, despida de razão, ornada de colares e dores. Estrelas tingiam seus cabelos de todas as cores. 
Pedra e punhal. Lutaria até destruir de vez cada inimigo que a atingisse. Recusava ofertas de paz. Não estava lá para acatar apelos. Aquilo custaria caro, mas não a ela.  Não pagaria mais nada. Já se cansara do jogo, do momento desperdiçado sob a proteção de senhores. 
Agora, seguiria sozinha, em passos livres, quase em corrida ascensão. Queria alcançar. Queria agora. Em fogo, abraçar a vida.

sábado, 11 de maio de 2013

A MÃE SOU EU

Mulheres sorriem e relembram o dia mais feliz de suas vidas. Ostentam alianças, brilhantes e fotos. Muitas se dizem assim felizes a partir daquele dia, o enlace do casamento, ou do pedido, ou do primeiro beijo. 
Saliento que comigo não é assim. Ah, sim, já amei. Dediquei meus dias e noites a amores honestos e outros nem tanto. No entanto,  sei de cor o dia que ficou pra sempre marcado como o mais feliz da minha vida. Não era nem dia, era madrugada. Vinte e cinco minutos de uma nova data, passada a meia noite, era tudo luz e amor. 
Ela nasceu, envolvida em uma luz suave, sob o respeitoso tom dos que ali assistiam a sua chegada. Tudo tão rápido porque ausente eu estava daquele plano. Todo o meu ser recusava-se a se desligar do corpo e alma que se abrigavam ainda em mim. Então, permanecemos unidas, entrelaçadas em fios e laços de dominantes sentimentos.
Nascia ali uma filha, renascia a mulher.  Eu já não era filha de uma mulher. Não mais pronunciava essa palavra "mãe". Por anos, desejara que a saga continuasse. Intuindo em sonhos, sapatinhos cor de rosa, borboletas e flores. 
Ali estava a felicidade embrulhada em camadas de ternura, liberta da placenta das expectativas. Minha, não por posse. Minha por ser o meu corpo a sua origem. 
Tive certeza de que só se repetia o que sempre soubera. O amor chegava de repente, mas estava ali o tempo todo. Mergulhado nas ondas do destino, nas espumas do desejo, era o sal da terra. 
Então, hoje como todos os dias, sei a resposta. Meu dia mais feliz foi aquele que se desenvolveu em leite, beijos, abraços, cuidados, medos e erros. 
Olho-me sem espelho. Vejo-me nos olhos que sorriem, refletida em mil sonhos. Sou eu. A mãe aqui agora sou eu. 

A RECOMPENSA

Sem certezas, sem promessas, sem quase forças. Era agora a hora de parar? Momento de sentar e começar a chorar? Diante das portas trancadas, somente a atitude de arrombar e invadir. Não precisava de convite ou tapete vermelho, apenas da sua tão temida ousadia.
Debruçou coragem e força sobre os obstáculos. Nada lhe parecia tão intransponível assim. A menos que os sentimentos fossem outros. Se a lua tivesse alterado tudo mais uma vez. Se as mares surgissem ao contrário, derramando-se em retirada. Enquanto houvesse luz, haveria também sombras. E perspectivas em tons pesados.
Percebia-se iluminada, produzindo regiões escuras, projetando suas manchas enegrecidas pela mediocridade. Nada mais do que a ausência, a origem dos mesmos passos em direção tão oposta ao antes determinado. 
Amassou lençol e planos enquanto despertava para mais um dia. Esticar os músculos parecia mais fácil do que estender o tempo. Nem mesmo sabia para que tanta pressa lhe servia, já que certeza de nada mais tinha. 
As portas estavam ali abertas, forçadas em arrombos de impulsividade. Para que serviriam agora? Passagens inúteis para o vão de novos acontecimentos? Folhas de madeira que só lhe despertavam indiferença e lentidão. 
Olhou novamente para todas as alternativas daquele caminho que agora lhe parecia longo demais. Atalhos já haviam lhe oferecido pedras e espinhos além da conta. Seguiria por ali mesmo, até que novos horizontes se desenhassem sobre a sua vida.
Observou o céu. Chovia. Lentamente, em pequenas gotas de preguiça. O sol ainda presente, um tanto resignado por originar sombras em cascatas. Haveria um arco-íris ali adiante. Contaria os segundos, os minutos, para que isso também acontecesse. Que das lágrimas celestes e sombras solares, viesse a sequência de cores que a tudo embelezaria. 
No fim, não antes nem durante, estaria ali o pote. Cheio de douradas alegrias, em ouro mergulhadas sensações. Era o que merecia, afinal. Nem mais, nem menos, ser assim recompensada.
 

sexta-feira, 3 de maio de 2013

BUTTERFLY ORIGAMI

Aliso meus papéis tentando escolher um. Somente um que me vista de forma adequada para o momento. Há de ser o mais encorpado, o mais resistente, o menos amassado. Flexível feixe de papiro, adornado com delicadas fibras. Minhas fibras, redobradas tentativas de fortaleza. 
Sinto a textura do material que não quero mais reciclar. Terá seu destino ignorado por mim. Vista-me com a facilidade de um sorriso. Raspe de mim todo relevo mal empregado. Deixe-se moldar nas depressões sucessivas. Nivele, preencha, supere as falhas. Na palma da mão se crie.
Dobro-me diante das evidências. Em leque, deixo todos os sentimentos abertos. Cortes, feridas, arranhões. Não mancho, não maculo, não tinjo. Atingida sou por uma gama imensa de sensações. Desta vez, peso grama a grama as decisões. Quero apresentar o melhor, o mais sofisticado padrão, mas nada parece se adaptar as minhas expectativas. Não há qualidade nesses pedaços picados. Uma longa folha estende-se branca e sem história. 
Recomeço, aliso, dobro, friso, adorno. Repasso dedos e olhos. Acentuo linhas, igualo lados, contemplo efeitos. Sinto o papel amolecer, umedecer sob minhas mãos. Reconheço minhas próprias lágrimas e expulso todas dali. Não é a hora delas. Retomo ao trabalho, lento e minucioso processo. Concebo asas, liberdade esmagada que se abre em lóbulos estranhos. Eu sei, repito muitas vezes para mim mesma. Sei das asas, sei do voo, sei de mim. 
Termino. Revejo detalhes por curiosidade e apego. Deposito sobre o fundo colorido. Contraste e dor. Não há de ficar para sempre. É assim. Sou assim. Metamorfose em floração, borboleta em transformação. 
 

quarta-feira, 1 de maio de 2013

ANJO



Não há tradução possível. As palavras esbarram em significados alterados segundo após segundo. Muito mais do que um estado, a onipresença, a sutil permanência. Estalos repetidos, aplausos e vaias também. Todo luz, percorre o caminho com passos desfeitos. 
Desmancha os cabelos com as mãos como se criasse o seu próprio vento. Se prestar atenção, ouvirá um tango ao fundo. Nada de compassos relaxantes. É tudo misto de ardor e urgência.
Anjo e suas camadas de malignidade. Anjo e seus anseios tão pagãos. Asas cobertas de piche. Narciso florescendo em pleno lodo. 
Não vejo nada senão beleza. Hipnótica certeza. Borboletas sem obrigação de lagartas. Suspensão de jardins mágicos invadindo céus e sonhos. 
Admiro quase sem ar. Busco inspiração na sua imperfeita semelhança. Recolho-me aos seus olhos de pecador alado. Resvalo em todas as suas palavras não ditas. Tenho mais tempo do que precisaria. Tenho mais para contar do que seus ouvidos suportariam. 
No momento, me calo. Sinto as plumas do inusitado fazendo cócegas no meu bom senso. A lógica esparrama-se preguiçosa pelo momento seguinte. Não darei aviso ou permissão. Meus motivos já encontraram anjo e demônio. Minhas intenções já foram gelo e lenha de fogueira. Tudo foi antes e nada ficou para depois. 
Abrace-me, anjo. Como se recolhesse meus múltiplos cacos e recordações picadas. Refaça-me no seu peito, sem solidão ou culpa. Adormecida pela sua presença, talvez eu nem perceba que me desfiz mais de mim do que deveria. 
Não há mais respostas em nuvens ou cantos. O bater das asas ecoa como minha única melodia.