sábado, 17 de janeiro de 2015

UMA NOITE QUALQUER

Quase hipnotizada, Marina encostou o nariz na janela. O contato frio despertou-lhe os sentidos já entorpecidos. O ar expelido pela respiração entrecortada embaçou a visão que antes transparecia. Afastou o rosto e tocou o vidro com as pontas dos dedos. Ouviu um sino distante e observou o craquelar do cristal. Vidro transformado em flocos macios, esvoaçantes, valsando sob um céu azul profundo.
Se Marina soubesse que a liberdade exigiria tão pouco esforço, teria se apressado no desfazer do destino. Livre, respirava o mundo que, um dia, também a fizera feliz. Lembranças, doces lembranças que faziam seu estômago doer. Ou seria apenas fome?
Era tudo o que lhe restava: a liberdade em uma noite qualquer sem luar. Ser livre para recordar um passado tão breve e divagar sobre um futuro que lhe parecia por demais distante.  Marina sacudiu a cabeça para dissipar a tontura que insistia em chegar. O balanço fez com que os negros cabelos cobrissem suas costas como um xale de espessa lã. Seus olhos adoçados em tons de mel ainda guardavam a essência de uma infância perdida.
Sacudido por uma súbita onda de tremor, o corpo diminuto encolheu-se, agarrado àquele nada que invadia a gélida madrugada. Marina esticou os braços para provocar algum movimento no ar como um maestro a reger intenções.
Por alguns segundos preciosos e fugazes, sentiu-se planar em solitário voo, ainda que desprovida de asas. Assim como em um delírio, parecia ter olhos de águia, ou talvez, a sabedoria de uma coruja. Mau agouro. Era tarde, muito tarde, ela repetiu para si mesma mais de uma vez.
– Não vamos falar disso agora.
Ela virou-se, espantada com a voz que não se apresentava como real. Os flocos de neve ainda caíam formando um manto aveludado. De repente, surgiram dorso, patas e uma bela cabeça ornada por um único chifre. Extremidade revelada como uma adaga sagrada dos muitos sonhos que Marina atrevia-se a guardar. Era dela, o unicórnio de maravilhosa crina, balançando com o vento gelado em noturna vigília.
– Ainda não vamos falar disso, menina.
Marina, seguindo impreciso instinto, fez-se amazona e no seu unicórnio encantado montou. O pouco peso não abalou nem crina, nem sina. Ela seguiu feliz, segurando-se nos pelos que lhe pareciam feitos de seda.
Depois de alguns minutos de êxtase, a música começou, invadindo a noite com o seu carrossel de compassos. Girando, girando, sem pausas, as notas subiam e desciam, acompanhando a risada infantil. Era ela, Marina, menina, que ali confundia o tempo com sorrisos.
– Não falemos mais disso, não mais.
Marina sorriu, concordando com o companheiro de viagem. Não ousou contestar aquela imagem que a distanciava cada vez mais da razão. Preferiu despir-se de qualquer desconfiança, embriagando-se da nova realidade com voracidade.
Com delicadeza, Marina controlava o ritmo do unicórnio. Parecia que qualquer movimento mais brusco faria aquele ser mágico sumir. Fechou os olhos e sentiu a neve cair sobre seu rosto, misturando-se às lágrimas.
Cansada, a menina permitiu-se viver aquela estranha passagem, dando as costas a qualquer receio. Viu-se coroada por um halo de delicadas flores entrelaçadas. Vestes muito alvas tocavam-lhe a pele, cobrindo seus últimos temores. Cristais pendiam de suas orelhas e pescoço como frias constelações brilhantes. Nunca fora tão rica, princesa munida de forças estelares.
Admirada com a beleza do momento e das sensações calmantes que lhe vinham, a garota pensou em despertar do transe. Estremeceu, abrindo os olhos com muita dificuldade. As pálpebras pesavam convidando ao adormecer. Talvez fosse o frio, a cauda do sono a lhe açoitar os pensamentos.
– Não precisamos falar sobre nada disso. Confie, apenas confie.
Os olhos de Marina vidraram, pontilhando uma mira que nunca existira. A flecha aguda da dor perfurou a pouca consciência, desfazendo-se em uma nuvem de torpor.
O unicórnio já amuado não mais falou. Silenciou a magia em galope solene. Marina, pequena, magra assombração do que pretendera ser, inclinou-se, abraçando o dorso do mágico animal. Não sentia mais frio. O contato macio do pelo em seda trançado serviu-lhe, enfim, de acalento. A coroa de flores caiu, deslizando pelos cabelos e na neve afundou. As pétalas espalhadas transformaram-se em pontos de luz. Talvez velas, chamas impossíveis no frio cortante da noite.
Diminuindo aos poucos o ritmo do seu trotar, o unicórnio concordou com o destino. Estancou, relinchando em descompasso fúnebre. O corpo da jovem tombou em lenta procissão sem anjos.
Na estática cena, a menina embriagava o solo com seu último desejo. Ainda que fosse aquela a única vez, Marina teve sua prece atendida. Encantada seria, na mais fantástica fantasia, para toda a eternidade jamais esquecida.
O unicórnio curvou-se em reverência à escolhida da noite. Não era mais uma invenção desenhada em sonhos. Já não precisava existir para aqueles olhos febris. Sua reluzente figura seguiu viagem, cobrindo de estrelas o caminho sem volta. A menina dormia no seu sono de mentira.
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