terça-feira, 30 de julho de 2013

O ESTRANHO


Ela encostou a cabeça no travesseiro e começou a recordar. Sem sentido essa viagem de volta a lugar algum. Pura distração na hora prevista para descanso e paz. Na tela poluída com imagens do dia, um ponto vazio, ali no canto, chamou sua atenção. Nele havia aquele silêncio do caos, abrigo do esquecimento, o palpitar solitário de uma tempestade a se aproximar. 
Entre todas as cores que ali ela pusera com capricho e, talvez mesmo por um capricho qualquer, lá estava o centro de tudo. Discreto, camuflado por camadas de poesia e fantasia. Improvável suspeito de crime algum. Nada falava. Na verdade, era mudo companheiro. 
Assim, quase insone, ela se deu conta da distração cometida. Tanto movimento e encanto provocaram a perda do foco. As informações eram quase inexistentes. Sabia sobre o filme preferido, o carro roubado, o braço machucado. Os elementos surgindo como peças imprecisas de um quebra cabeça de mil desejos. Difícil era formar o cenário. Mais complicado ainda era conhecer os personagens. Não tinham sido sequer apresentados. Como continuar com aquele teatro sem cenário e sem personagens? 
Não havia menção alguma do estranho naquele script. Família, amigos, amores. Nem uma linha sequer. Enredo de fato só de suspense e mistério.  Os diálogos eram extensos, fluíam sem a menor tensão. Não revelavam requintes de espião, nem artimanhas de inimigo.Quem era ele, afinal?
O narrador com sua fala arrastada aproveitava os elementos que por ali encontrava. E só ela, no vazio, fitava presente e futuro. Seus sentimentos ainda velava um tanto receosa, mas de tudo um pouco já havia revelado. Por que não? Por que teria de ocultar se nela só havia verdades? 
Na sua mente, ele realmente reinava. Quase pleno, mas absoluto. Calmo, paciente, com olhos de quem vê o mais dormente. Apontava o caminho, a direção como quem nada decide e só finge acompanhar o fluxo. Lento, absorvente movimento. Mergulho sem chance de resgate.  
Contaminada como estava, era só alegria e encontro. Não conhecia senão ou oposição. Só queria estar ali, ir com ele aonde fosse, em transe febril ou em lúcidos passos. Ah, que desconhecido fosse, porque dele partilharia um mundo. Se o objetivo era a ausência de expectativas, então que lavassem as almas de preconceitos e temores. Seguiriam assim, juntos, mãos dadas, até que uma encruzilhada surgisse. Ou não. Afinal, era só estranho encanto!  













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