sexta-feira, 19 de outubro de 2012

HERANÇA MATERNA

Encontrei um fio e não da meada mais macia. Quase um arame farpado, garantia certa de cortes e feridas. Enlacei, não cortei, declinei da ajuda alheia. Mãos agredidas, alma amarrotada, lembranças espalhadas. E de todo esse novelo pesado, denso, suspenso e suspeito, fiz minha a armadura que se impôs tão necessária. Ela revela-se sutil quando sorriso, nem mais nem menos perigoso do que qualquer armadilha. Ou se mantém fria como metal, protetor, repelente de qualquer emoção mais forte.
 
As farpas, agulhas, facas, espadas, lanças, todas chegam. Não há como evitá-las. Algumas penetram com precisão cirúrgica, outras se deixam desviar pelo meu olhar ou pela secura de medos.
 
Quando me apresentaram as flores, também me espetaram com os espinhos. Sangrei algumas vezes com intensidade de lava escaldante. Outras tantas foram apenas cicatrizes leves que se camuflaram na pele sem alarde. Ainda sinto a suavidade das pétalas, da lembrança contínua dos cuidados de jardineira. Rastro, ou melhor, rastros do que já teria sido e nem queria mais ser. Explosão repentina. Desapareceu como golpe de machado. Não um golpe de misericórdia, posto que nenhum caminho fácil se abriu.
 
Oposição de astros ou estrelas decadentes. Suma sacerdotisa das noites internas e dias ensolarados do amor. Há em mim essa densidade herdada, a teatralidade de fundo de palco, a desarmonia espantosa de emoções. Há cores mais profundas, a pele clara que se rasga sem temor, a pressão que se eleva, a felicidade na maternidade. Também a inconstância, a imprudência do agir, a expressão arrebatada de quem carregou correntes desnecessárias. O intenso chocar das ondas nas rochas. O impiedoso silêncio de quem sofre e não aceita repartir.
 
Diferenças marcantes me salvam. Colocam-me além do gosto de sangue que sinto. Levam-me a sorrir com ternura e agradecer. Sou tão plena e assumidamente desnorteada que permaneço feliz mesmo no caos. Tormentas não me assustam. Navegadora de poucos mares, mas  conhecedora do profundo oceano. Todo amor.


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